Wigo andava por esses últimos dias com um incômodo que não sabia o do por que. O imigrante alemão veio à vila vender sabão e velas, enquanto sua roça imatura não rendesse frutos - mandioca para farinha, cana - de - açúcar para cachaça, banana para bolos - Ah! esqueci de dizer - a cachaça é a mais famosa da cidade, diga-se de passagem. Também repolho para chucrute - são para a sobrevivência. Velas e sabão para capital.
Nosso protagonista, como
todos os imigrantes, cheios de
sonhos e poucas esperanças, dobrou a perigosa travessia do Atlântico a procura de uma vida melhor sabendo que precisaria
de muita força de vontade e perseverança nesta empreitada aventurosa, pois, para os trabalhadores do Velho Mundo o que regia a vida naquele momento era a filosofia do materialismo histórico: construir com as
próprias mãos as mudanças. Então, deu um passo, sendo o primeiro dos familiares a sair de seu país rumo ao outro lado do Oceano Atlântico. E pelo visto o primeiro a ver o mar. Engenhoso, para uns, louco e sonhador para muitos outros, encarou a empreitada, e não é hora de se arrepender dessa audácia. Não ainda.
Contudo algo o aflige. Algo coça em
seu corpo, algo faz sua cabeça suar. Pode ser o calor talvez. Este bem
melhor que o frio de sua pátria, indiferente às condições de miséria e fome que provocava
entre os homens. O clima daqui incita o crescimento das plantas, com rápido resultado nos frutos do trabalho. A fartura daqui é sem igual. As frutas são as mais diversas: caju, manga, pitanga, repolho, pepino, tomate, pimentão, jabuticaba, goiaba, butiá, entre outros milhares de milhões.
Wigo contratou negócio com um português chamado Mourinho. Esse homem de fala engraçada, bigode bem aparado com as
pontas levantadas, baixo, pernas curtas e encurvadas, possui um moinho de
farinha e um alambique de cachaça. Trocam produtos para poder usar o moinho vez
ou outra. O português é casado com uma brasileira cor de melado, cabelos
ondulados negros e longos, olhos desconfiados sendo de pouca fala. Diferente do
marido tem pra lá de um metro e oitenta. Forte. Lavadeira. Gosta de uma bebida
forte nos fins de tarde, aí, volta e meia, desce o braço no marido
português. Acha quase sempre que seu homem a esta traindo com as mulheres da
Casa da Dona Mafalda.
Wigo
já viu Josefina, a mulher de Mourinho, pegá-lo pelos braços jogá-lo nos ombros
e entrarem para casa. Essa tarde em que foi testemunha da cena atípica o casal
havia bebido a bicas. Com esses olhos azuis céu que deus lhe deu viu a mulher se despir na frente da porta aberta e gritar com o coitado do marido, “como pode olhar
para outra vagabunda qualquer na rua tendo "isso" pegando fogo em casa
a espera dele para apagar sua vontade?”. A brasileira sacou um cinto e desceu a
surra no português gritando: “vai olhar para outra rameira na rua de novo?”. O
açoitado implorava aos berros por perdão e o sarrafo só sessava quando os olhos
da mulher brilhavam de satisfação seguindo de um sorriso indecente que deixava
Wigo com vergonha de presenciar aquela cena.
Não que Wigo gostasse de ser indiscreto, vigiando a vida alheia, entretanto, um espetáculo daquele não acontecia todos os dias. Pensava o que diria sua velha mãe sobre isso. Josefina não se dava ao luxo de fechar sequer as portas e janelas deitando-se com Mourinho no chão para terminar o que começou. Assim à tarde, testemunha monótona, caía por aquelas paragens.
Na
vila e região moravam muitos conterrâneos de Wigo. Muitos homens e poucas
mulheres. As que por ali viviam eram muitas vezes disputadas a chumbo ou facão.
Outra situação inusitada para Wigo foi encontrar pessoas negras. Nunca havia
visto pessoas tão diferentes. Homens e mulheres. Essas pessoas daqui tão
diferentes das de sua distante e rebuliça pátria o perturbou no inicio.
Acostumou-se então. Entendeu que pessoas honestas e maldosas são de todas as
cores e todas as raças.
Retornando
ao seu incomodo, algo o incomodava mesmo. Não conseguia descansar as ideias. Os
conhecidos diziam que precisava encontrar uma mulher, casar, juntar os trapos.
Pensou em procurar na difamada casa de Dona Mafalda uma garota. Viu homens se
perderem e perderem tudo o que tinham ao frequentarem esse famoso bordel.
Inclinado a não esperar pela promessa do pastor Kurtz de conseguir a ele uma
esposa, resolveu por si mesmo procurar a resposta de suas angústias. Parou de
frente ao cabaré de onde vinham risos e elogios soprados pelas mulheres de dentro
da casa convidando-o a entrar, indeciso, não por esperar as promessas do pastor Kurtz já
sabendo por línguas peçonhentas que o líder religioso tem na lista de
pretendentes à noiva a mais rabugenta filha da Germânia, Sônia, pronta para pescar um
marido. A Tilápia não seria ele. Ali ficou por lembrar dos homens destruídos pelos prazeres que ali encontraram. E tudo o que tinham gastaram.
Por
minutos ficou em um embaraço diante da porta da casa de Dona Mafalda e suas
meninas. Duas das quais, lisonjeiras e simpáticas, borradas de maquiagens e pó
de arroz o convidavam a entrar diante da soleira da porta. Com olhos
maliciosos, línguas tentadoras, gestos e sorrisos, gracejos provocantes que o atiçavam. Wigo, cá com seus
botões quase derrotados, fica indeciso, lutando contra uma frente de batalha
interior pesada. Seus desejos carnais lutam contra a moral que recebera da família,
da escola e da igreja, “Aquilo não é lugar de um homem de bem”, ouvia. A
integridade daquelas moças, as histórias que ouvia de roubo, extorsão, e morte
entre aquelas paredes, mesmo sendo inverdades contadas por vantagem ou venenosas
vozes locais, o ancorava, temia também se perder e perder o controle de
suas emoções. Ouvia que desejos são incontroláveis, perigosos, e a paixão por
uma mulher o amedrontava.
Exemplos
são milhares. Seu Ernestão, vizinho de Kelson, o norueguês, é um desses.
Apaixonado por uma rapariga cor da noite deixou mulher e filhas fugindo para o Amazonas com a amante. O próprio Mourinho, seu vizinho português e seu casamento com a brasileirona! Aquilo só pode ser amor.
Existem muitos boatos de feitiçaria nestas terras verdes. Imigrantes que
resolveram viver entre nativos nos sertões mais profundos não são exceções. O embate, vencido
pela razão o faz recuar seguindo rua adiante. A insegurança de se perder o fez
suar frio. Segue, entre satisfação e insatisfação.
Wigo
enquanto vende seus produtos, vela e sabão, meio distraído, procura por
resposta para seu incomodo. Caminha, dá troco errado, vende outra vez fiado
para seu Wolfgang que nunca paga o que lhe deve. Está esquisito mesmo.
Próximo
ao fim da manhã é hora de retornar para casa, preparar velas e sabão a tarde
toda. Compra fumo no armazém, linguiça, pão, decidindo que será esse seu
almoço. Encontra ao caminho Luciano, com quem troca palavras em português e
alemão. Luciano conta que estão montando um grupo musical e o convida. Wigo
toca piano e acordeon. Luciano quer aprender e se ofereceu a pagar pelas aulas.
Para Wigo uma oportunidade a mais para ganhar dinheiro. Luciano, apesar de sua
origem, participa de um grupo de capoeira e jongo, convida sempre o amigo, como
o faz mais uma vez, esse inclina que um dia aceitará o convite. Trocam mais
umas palavras e despedem-se com um forte aperto de mãos.
Com
seis passos aproximadamente Wigo esquece o amigo sendo inclementemente
perseguido pelo seu incomodo e mal estar. Leva a cabeça um chapéu de palha com
grandes abas que protegem seu rosto branco de pequenos olhos vivos e azuis do
sol dos trópicos. Tira às vezes o chapéu para secar o suor da cabeça e testa
que escorre. O luzente corpo celeste a pino força as pessoas a retornarem para
casa ou se esconderem quando possível nas sombras refrescantes de árvores e casas.
Wigo
decide seguir para casa quando pelo caminho encontra um grupo de índias
vendendo cestos de vime e panelas de cerâmicas. Decide negociar com as mulheres
nativas que formam o singular grupo a troca de produtos. Pequeninas, cabelos
negros mais escuros do que uma noite de inverno em sua terra natal sem lua,
lisos e brilhantes não esboçam reações a sua chegada. Nenhuma delas o repara.
Olhares baixos e indiferentes. O silêncio domina o grupo. Passivas ao principal
instrumento para venda comercial, a lábia, as mulheres dispensam sorrisos ou a
fala simpática, características exigidas nessa disputada profissão. Wigo,
sarcástico, sempre acha engraçado como são desconfiados. Não que os alemães
também não sejam muito diferentes.
Sem
disfarçar seu sotaque germânico pergunta o valor dos cestos que vendem as
morenas mulheres.
-
Quanto?
As
índias se olham, trocam palavras de sua língua natural, discutem entre si sem
se incomodarem com o homem ali interessado em seus produtos artesanais. Outra
vez, Wigo tenta um contato apontando para o cesto. As mulheres de olhos negros,
rostos redondos, lábios grossos não respondem, até que uma das jovens, três são
jovens, decide dar um valor ao cesto. Rápida como o vento no alto das montanhas
que cercam a região em sua resposta a moça deixa o jovem sem entender nada.
Repete então o que entendeu apontando outra vez para o cesto, mais uma pergunta
do que afirmação. A jovem assente com a cabeça afirmando sem muito interesse de
dialogar com Wigo, e sem dirigir um olhar se quer a ele. Como todo bom alemão
tenta negociar com alguma vantagem, ele insiste.
-
Esse e esse, por dois mil-réis?
A
índia é osso duro e firme no preço.
-
Não, não. Esse quatro, esse três.
Essa
bugre é esperta, pensa com seus botões Wigo. Arrisca se divertindo na negociata.
-
Esse e essa por cinco?
-
Não. Esse quatro, esse três e esse o mesmo. Parece zangada com a insistência do
colono, dispõe-se de lado desprezando com esse gesto a presença do homem de
língua enrolada.
Que
bugrezinha danada, resmunga em alemão.
Decide
depois de instantes silenciosos comprar os cestos e uma tigela de cerâmica.
Como hoje sente algo diferente de outros dias, ou melhor, diferente de todos os
outros dias de sua vida deixa inacreditavelmente perplexo com a ação algumas
moedas a mais e um pão caseiro para as mulheres. Resolve ser gentil e se
despede despejando seu sotaque germânico ao se levantar.
-
Obrigado. Tenham um bom dia senhoras.
Levanta
o chapéu despedindo-se. As indígenas começam a falar entre elas na língua
natural a seu povo. Enquanto Wigo se vai. Caminhando para casa percebe ser
seguido quando alcança os limites urbanos que forma a pequena vila colonial.
Estaca os passos quando ouve um chamado feminino cheio de quase imperceptível.
-
Alemão. Alemão!
Wigo
espantado encontra-se sendo seguido pela jovem índia que vendeu a ele o cesto.
-
O que quer? Interroga à jovem.
-
Vou morar com você. Responde.
-
O quê? Não! Não quero.
-
Vou morar com você e ser sua mulher.
-
Não! Volta. Não quero. Que ideia...
-
Ideia de minha família. Decidiram e vim morar com você.
-
Não. Irritado Wigo aperta o passo.
E
quanto mais acelerava os passos assustava-se, pois a índia mesmo pequenina e de
pernas curtas o perseguia.
Meu
conhecimento zero da extraordinária língua germânica não me possibilita
traduzir as palavras e frases proferidas de Wigo, irritado com a perseguição,
explode, grita, até pedras joga na jovem cor de mel o que de nada resolve.
Implacavelmente ela insiste na caçada.
-
Nein! Nein!
Wigo
resolve correr quando se aproxima de sua casa já à frente na esquina. Escancara
o portão sobe enrolado com suas compras e vendas as escadas que dão acesso ao
imóvel e rápido como um relâmpago bate a porta encerrando-a e tranca-a num som
que mais lembra uma trovoada. Fecha as janelas e dos vidros vê a indiazinha
invadir seu quintal até sumir do alcance de seus alarmados olhos. Indignado
bebe um gole de água da moringa sentindo não ser o bastante para se acalmar
toma uma dose da cachaça do alambique do português Mourinho. Lembrando-se dos
vizinhos percebe estar sendo observado, logo confirma o que diz seus sentidos e
vê Josefina balançando negativamente a cabeça em desaprovação a vida do vizinho
que cuida da janela de sua casa. Fecha a abertura com violência depois de
gritar ser uma indecência a vida que leva o vizinho. Wigo se irrita. Resolve
preparar algo para comer e com o estômago cheio pode pensar numa solução
melhor. Tem que fazer velas e sabão para a venda da semana. Isto está
resolvido.
Inesperado
os sons que ouve na volta de casa. Batidas, passos, contudo decide concentrar
sua atenção na comida que prepara. Come. Quando se aprontando então para tirar
uma pestana sente o cheiro de fumaça enlouquece. Abre a cortina que havia
fechado de uma das janelas, observa com cautela e pelo canto da abertura
evitando que a jovenzinha o visse que ela acendeu o fogão a lenha da varanda.
-
Mas essa atrevida. Disse fervendo o sangue.
Tenta
das janelas avistar a jovem nativa. Sem sucesso em vê-la, cansado, logo se
desinteressa pela abusada menina. Deita-se no sofá após beber um pouco da
cachaça do vizinho Mourinho que chama logo o sono que o encontra esticado nas
portas da casa dos sonhos.
Mais
tarde, arrastado de seu sono por um cheiro de milho e ovos que invadem suas
narinas levanta-se esperançoso para descobrir-se livre da intrometida nativa,
procura-a através dos vidros e janelas, que então cai por terra à alegria e a
vê em uma rede, ou melhor, em um de seus lençóis que lavou pela manhã, deitada
ali, cuidava de uma panela em plena fervura no fogão a lenha.
Wigo
enlouqueceu. Tremia, enfurecido com a audácia da bugrezinha despeitada. Corado
decide por fim nessa situação absurda. Quando avança à porta encara num quadro
uma foto de seu pai. Paralisado, é alvejado por lembranças e palavras ainda
vivas em seus ouvidos postergadas por seus familiares. Vozes austeras, mas de
muito ensinamento. Além das vozes de seu falecido pai ouviu seu tio-avô,
Guilherme, a avó Rosa, e em especial o avô Friedrich. A respiração acalma, o
vermelho vai dando espaço ao branco de seu rosto como sinal de
contingenciamento dos nervos. Lembra muito bem das palavras de seus
antepassados: “antes de se apressar pense nas oportunidades”.
Agora
com a mão no queixo, olhar longe, concentrado em seus pensamentos, decide ser
prático, alisando os bigodes, olhos azuis faiscantes que exibem engenhosos
cálculos cerebrais. Decide possibilidades futuras de ação. A índia pode vir a
ser útil. Cozinhando, lavando, deixando mais tempo livre para Wigo produzir e
vender mais velas e sabão. “pode ser uma oportunidade a vinda dessa
bugrezinha”, pensa, animando-se.
Decide
sair. Veste o chapéu de palha e um paletó. Segue ao rancho onde tem uma
carroça, arria o cavalo Hermes e sai sem se dirigir à mulher que agora ocupa
sua varanda. A jovem não se dá ao luxo de perguntar, sem deixar a rede, de onde
cutuca a lenha com um tição excitando o fogo que cozinha algo. Em cima da chapa
do fogão a lenha encontra-se um cachimbo de barro secando.
Wigo
dirige-se a casa da família Kndt. Relata a Wagner Kndt os acontecimentos do dia
e seus planos futuros. Wagner tem o sarcasmo estampado no rosto redondo,
corado, o cheiro e a malícia dos olhos entregam que andou tomando umas
cachaças, oferecendo a Wigo que aceita um trago só por educação. O amigo ainda
diz que ajuda a clarear as ideias, abrir portas e destravar línguas. Grita a
Frida, sua esposa, que traga um pouco daquele aguardente das Minas Gerais,
voltando em seguida sua atenção a visita. O sorriso que abre logo é seguido de
uma colocação filosófica sem as presilhas soltas pela bebida.
-
Estas são terras de loucos. E nós alemães estamos entrando na brincadeira. Mas
gosto daqui. Verde, clima bom e boa cachaça. Não tenha medo de brincar também.
Nesse
instante aproxima-se Frida com pequenos copos de vidro e uma garrafa, com o
famoso líquido branco dentro. Servindo-os tem o cenho serrado em reprovação.
Wagner retruca com palavras em alemão prussiano. A mulher rechonchuda, loira,
olhos azuis fortes, não deixa barato respondendo num tom de indignação,
reprovação e discórdia a altura das palavras do marido. Wagner a segura pelas
saias, puxa-a para seu colo sentando-a, cheira suas tranças, sorri para Wigo,
inconsequente, enfia uma das mãos entre as pernas da mulher que não revida, e
sim, cai numa gargalhada desabrochada e insinuante.
-
Você, amigo Wigo, precisa de uma alemã assanhada como a minha. Essas índias
tomam banho a toda hora e tiram do corpo o cheiro de mulher.
Wigo
está vermelho.
-
Vai mulher. Pegue uns vestidos das meninas e da sua irmã também que nosso amigo
Wigo tem uma nova namorada. Ela não pode ficar andando por aí como veio ao
mundo que nem eu resisto.
-
Obrigado Wagner – disse Wigo ao amigo.
-
Então toma mais um gole comigo.
Servido
os copos, vira de uma vez na boca a bebida, estralando a língua seguindo com um
tapa nas nádegas da mulher após empurrá-la de seu colo e essa solta um grito de
dor cheio de meiguice, onde escapa um doeu.
-
Sabe Wigo – recomeça ao mesmo tempo em que serve outra dose de cachaça nos
copos – bebe, bebe. Como ia dizendo: melhor uma mulher que mulher alguma.
-
O pastor ia me apresentar uma moça de família.
-
Eu sei, eu sei. Mas aquela não ti serve. Digo, pois, sou teu amigo. Não lava,
não faz pão, nunca conheceu homem e tem vinte e cinco anos! Dizem que quando vê
uma moça bonita logo cola os olhos nela quase enlouquecendo as famílias da
jovem. Esquisita, não?
Wagner
ri descontroladamente, chegando a engasgar por falta de ar assustando o amigo
que o visita. Contudo, com um aceno de mão indica estar bem, em meio a tosses
roucas e incontidas. Acalma-se. Wigo não consegue se segurar e explode em
gargalhadas sinceras e temperadas pela cachaça que já o deixam de língua solta.
-
Esquisita, ora vejam!
Horas
depois retorna. Após deixar no rancho a carroça tratar do cavalo Hermes subir
os degraus de sua varanda com os vestidos nas mãos e jogá-los em cima da índia
que continua deitada na rede que esticou fumando seu cachimbo, autoritário Wigo
disse.
-
Veste.
Entra
em casa. Perdeu à tarde preciosa com Wagner e amaldiçoa-se pela bebedeira
àquela hora do dia. Recolhe com dificuldade suas ferramentas, tropicando segue
ao rancho. Antes, olha a mulher, deitada, pitando o cachimbo, olhando para
ontem sem preocupação com a vida. Vê os vestidos ainda no chão e resmunga
palavras soltas e tortas em sua língua natal, irritado com o pouco caso que a
indiazinha deu aos seus presentes.
Assustado
acorda abaixo de vassouradas e safanões de sua inquilina que resmunga palavras
cheias de sotaque e cólera. Wigo percebe ser noite sentindo uma forte dor de
cabeça, muito pior do que a surra que leva. Parece ressaca.
-
Vai dormir em casa. Vai! Está fedendo! Bebeu cachaça e fica fedendo.
-
Pare sua doida. Pare!
Wigo
ergue os braços na tentativa de se defender das vassouradas.
-
Sua doida. Me respeite!
-
Cici! Sou Cici, não doida. Cici.
A
vizinhança, sorrateira, observa a cena de trás das cortinas das janelas, ou da
rua mesmo. Estupefatas!
-
Alemão bebeu e não me deu nem um pouco. Vai dormir na casa não com os bichos.
-
Sua doida! Que é isso?
-
Para você aprender a lembrar de Cici. Fiz até cachimbo pra o alemão. Olha:
toma. Pra você. Cici quem fez. Lembre então de Cici quando tiver coisa boa.
A
jovem entrega o cachimbo a Wigo com fumo pronto para queimar. Espantado Wigo
ora olha para Cici, ora olha para o cachimbo em mãos trocando arduamente de
atenção. Antes de empurrá-lo para dentro, irritada, entrega-o uma tigela de
cerâmica com espigas de milho cozidas o que o surpreende ainda mais.
Os
dias passam e os projetos de Wigo encaminham-se sem maiores percalços. Mais
velas, mais sabão e mais lucro. As roupas para Cici que o jovem conseguiu com o
amigo Kndt ela rasgou assim que vestiu e se sentiu estrangulada, vestindo assim
a parte de baixo, as vezes como saia, enrolava no corpo, porém, não uma única
vez deixava os seios a mostra. Depois da visita de suas parentas, Cici aceitou
vestir roupas de mulheres brancas.
Sob
olhares indignados ou divertidos, dos moradores da vila, Wigo e Cici
frequentavam bailes, feiras livres e mesmo as missas católicas dos domingos, o
que não os impediam, esses olhares antipáticos, incrédulos e reprovadores, de
participarem dos cultos luteranos. A vizinha brasileira esposa do português
Mourinho sempre expressava sua reprovação com acenos negativos de cabeça diante
da janela de sua casa com a vida do vizinho alemão e a índia. Resmungava sempre
a mesma coisa: onde esse mundo vai parar.
As
brigas continuavam. Wigo não conseguia mais chegar perto de seu fogão. Cici
sentava vassourada nas costas largas do alemão, como ela insistia em chamá-lo.
Os familiares de Cici visitavam-na de tempos em tempos. Não falavam com Wigo.
Era como se ele não existisse. Conversavam na língua natural delas. Cici ainda
enchia de presentes aquelas mulheres o que deixava Wigo enlouquecido e explodia
com a índia quando iam embora. Muitos de seus conhecidos diziam a ele para não
enfrenta-las, pois, corriam rumores de surras lendárias que muitos índios
apanhavam das mulheres confrontadas nas tribos perdidas dos sertões
brasileiros. Histórias de afogamentos, linchamentos e homens transformados em
verdadeiros eunucos, ou, ao menos os que sobreviviam a essas mutilações
selvagens.
-
Selvagens. Palavras constantes no meio dessas histórias. Wigo comparava-as as
atitudes dos europeus civilizados. Basta observar como os brancos tratam os
africanos, escravizados como bichos; ou as populações nativas das Américas que
resistem até hoje a dominação do homem branco, europeu civilizador.
As
brigas entre os dois prosseguiam. Por anos mesmo. Até depois do encontro que
tiveram no rio que circunda as terras de Wigo. Ao chegar para o banho semanal
com sua toalha jogada ao ombro e sabão em pedra na mão, o jovem encontra Cici,
nua - não que nunca a havia visto assim, por diversas vezes nesses quinze meses
juntos ela arrancava as roupas do corpo e fugia para o mato. Wigo, sem saber
por que ia atrás da mulher saia à caça da guarani, com seus cães. Encontrava-a
sobre árvores, pedras ou cavernas pelas matas. Então laçava a mulher e
conduzia-a de volta a casa. As primeiras vezes Wigo desfazia o laço e Cici dava
no pé; lá ia ele, o atrapalhado outra vez atrás da índia. Logo consciente Wigo
aprendeu: deixava a jovem amarrada por horas até ela dormir. Quando acordava,
era outra pessoa. – então, nua, lambida pelo sol parecia diferente. Seus negros
e brilhosos cabelos refletiam uma luz mágica. A felicidade e alegria de Cici ao
ver o alemão chegar para o banho semanal o transformou.
Wigo,
de queixo caído, estático, com um rubro que tomou conta de seu rosto. Cici,
diferente sorriu seus alvos dentes com a beleza dos lábios convidativos e
excitantes, cheia de lassidão. Insinua com os dedos um movimento convidativo
para o alemão que não tem tempo para pensar e muito menos para resistir à
vontade que dominam os dois há tempos. Naquele instante mágico, a tentação dos
belos corpos, no rio atemporal. Amaram-se nas pedras, sob a vigília do sol por
horas ou dentro da água corrente e congelante pela tarde afora.
Cici
e Wigo tiveram quatro filhas. Tornaram-se as jovens mais bonitas e cobiçadas da
Vila dona Francisca. Leopoldina, nome em homenagem a imperatriz, Marcela, Tipí
e a única com a cor e cabelos iguais aos da mãe de nome Iamã. Suas irmãs
puxaram ao pai, clara e loiras, olhos claros como caramelos. Grandes bolas
ilegíveis. Muitos jovens perdem a cabeça e o juízo por elas. Verdadeiras
batalhas foram logradas pelo coração das meninas. Surgiram ódios e rivalidades
que ganharam gerações entre famílias por causa desse amor disputados a ponta de
facas e pólvoras.
Nossos
amigos caminhavam pela vida sem muitas mudanças. Wigo engenhoso de muitos
inventos sempre em sintonia com as novidades tecnológicas que assombravam o
mundo e com suas maravilhas que transformaram a sociedade assinou revistas
científicas, comprava livros, trocava cartas com diversas personalidades de sua
época. Discutiu evolução da vida com Charles Darwin, eletricidade com Edson,
sonhou uma sociedade igualitária com Karl Marx e depois bem mais tarde com Rosa
Luxemburgo de quem era admirador.
Escreveu
artigos em jornais europeus debatendo as teorias freudianas. Inventou um
mecanismo de cordas e engrenagens para facilitar o movimento do moinho que
comprou de seu vizinho o português Mourinho. Esse ficou doido depois que a
esposa morreu de uma doença desconhecida. Começou a beber aos baldes entrando
num ritmo sem volta. Então Wigo comprou o engenho do português que sem mais
razão de viver sem sua Joséfa afogou-se em um tonel de aguardente.
Wigo
ensinou as filhas a ler e escrever, em alemão e português. Marcela e Tipí
aprenderam Latim, francês e inglês tornando-se ótimas professoras e tradutoras.
Leopoldina e Iamã tornaram-se com o tempo mais parecidas com a mãe. Cici
passava muito tempo na rede fumando cachimbo e observando o vai e vem da
natureza.
Marcela
acompanhava o pai nas novidades científicas. Wigo inventou um pequeno motor
movido a óleo para seu barco e a filha metia o bedelho nas invenções do pai,
até desenvolveram, com a força do vento ao soprar alguns moinhos energia
elétrica para iluminar sua casa e ofereceu a Vila Dona Francisca essa novidade
moderna só vista na Europa e poucas outras cidades mundo afora. Trocando cartas
com gênios da tecnologia foi capaz de alcançar essa invenção que mudará o
século a vir. Contudo foi negada a instalação pelas ruas públicas.
Wigo
amava as filhas e também a mulher, mesmo não demostrando com palavras e sim com
atitudes que o tomavam de assalto como em dias em que a mãe das meninas
embrenhava-se nas matas rumando a suas antigas terras seguida por Leopoldina e
Iamã. Wigo tornava-se mais taciturno não falava muito e cuidava por mais tempo
do portão e por mais tardes solitárias. Marcela nada dizia tratava o pai com
mais carinho. Sabendo o que sentia e pensava.
Quando
retornavam das longas viagens a alegria brilhava de volta nos olhos de Wigo. E
outra vez a vida. Ouviam ao longe dentro da mata a conversa das mulheres. Por
dias falavam na língua nativa da mãe o que irritava um pouco Wigo. Com
paciência ele fingia ignorar. Sabia em seu intimo que logo voltariam a falar
nas línguas a ele familiares. Cici não. Sempre em guarani ou uma mistura de
português com a língua nativa. A Língua Geral. Continuava dando vassouradas em
Wigo quando lhe convinha e nesses momentos gritava irritada com ele em
português recheado de seu sotaque natural, quando logo se acalmava retomava a
seus secretos pensamentos no balanço da rede.
Uma
vez Cici sumiu sertão adentro com as filhas. Wigo teve uma coceira pelo corpo.
Estranhou. Ao retornarem meses depois só Iamã acompanhava a mãe. Mais tarde sem
motivo aparente Iamã informou ao pai que Leopoldina, ele já desconfiava de
algo, precisava confirmar suas suspeitas, ficou na tribo, casou e estava
grávida. A coceira aumentou em Wigo sem sossego. A saudade também o castigou
sem sossego. Decidido um dia armou-se com o rifle de caça fabricado por ele
mesmo, alguns pertences e alimentos. Vestiu as bruacas nas costas de Benéu, sua
mula mais forte, e sumiu mata adentro, arrastando Marcela e Iamã com ele.
E
Cici? Observou tudo em silêncio e descaso. Ao perder de vista Wigo e as filhas
deitou em sua rede pendurada no mesmo local do primeiro dia em que pôs os pés
no sitio de Wigo. Continuamente observando o vai e vem da natureza.
Três
meses depois surgem na clareira onde finda a trilha que lava a mata Wigo e suas
três filhas, Marcela, Iamã e Leopoldina contrariada e com um bebê de colo.
Seguia o grupo Benéu e três cães já batizados: Tupã, Leão e Hércules.
Iamã
retornou prometida a um jovem da tribo. Resolveu de imediato quebrar o silêncio
e disse a mãe o que ficou resolvido entre as partes envolvidas, entre o pai e o
cacique. Elas podem retornar e visitar os maridos, porém, o acordo só permite a
ida definitiva quando Cici e Wigo deixarem este mundo. A jovem esclareceu a mãe
que este ponto foi sugerido pelo próprio cacique por ordem de Tupã. Cici
pareceu dar pouco caso para a situação mudando a posição na rede virando as
costas para a filha. Sem palavras ou suspiros. O que dizer se o próprio Tupã
ordenou?
Tipi
foi para a corte estudar. Formou-se enfermeira, entrou para o movimento
sufragista, anarquista e abolicionista. Escrevia a família enviando as
novidades. Enviou uma foto sua usando calças! Comprou as encomendas pedidas por
seu pai em outras cartas entre diferentes instrumentos musicais. Tipi trazia
remédios e outros produtos quando visitava a família e a cidade. Recebia
encomendas e com muito grado retornava com os pedidos. Deu de presente ao pai
uma máquina de escrever e Wigo desmontou e a remontou todinha para aprender seu
funcionamento e quais mecanismos compunham o aparelho. Com a filha Marcela
tornaram-se os mais famosos e melhores consertadores de máquinas de escrever da
província. Não pararam por aí. Rádios e instrumentos musicais entraram oficina
de consertos de pai e filha.
Toda
essa capacidade de Marcela afastava os pretendentes a casamento, pois, os
rapazes a achavam inteligente demais e livre demais para eles.
Numa
dessas voltas à casa do pai Tipi trouxe uma máquina de fotografia, a última
novidade do mercado! Contudo sentiu que o homem estava triste com a partida da
mulher e filhas para a tribo e estavam longe a longos meses. Na primeira
oportunidade de reunião familiar bateu uma foto. A primeira de vinte e cinco
que registraram. Servem hoje como documentos históricos da paisagem e da vila
onde viviam.
Wigo
montou com as filhas que ficaram com eles uma banda de música. Ficaram famosos
nos bailes de toda a região. Cici sem nada dizer como era de seu costume
fabricou uma flauta de bambu e entrou para o grupo participando dos ensaios e
apresentações musicais. Tocavam sem discussões. As escolhas musicais eram
feitas pela filha Iamã, sem bate boca ou rejeições.
Enfim,
tudo na natureza tem um vai e volta. Wigo com seus oitenta e nove anos, no
leito de morte, pede a filha Marcela que cuide dos animais das irmãs e de sua
mãe. Disse que as amava muito, até mais do que a si próprio. Às dezessete horas
e vinte minutos do dia 13 de junho de 192... E tal fechou definitivamente os
olhos para deixar esse mundo que tanto amou.
Cici
não entrou em casa como era de seu costume. Mantinha-se, por todo o mês em que
Wigo permaneceu doente e na cama, em sua rede mais distante do que nunca em
seus pensamentos. Nem no cachimbo tocou. Não escapando nenhuma palavra de seus
lábios desde então. Não interrogava as filhas e netos sobre as condições do
enfermo e não derramou uma gota de lágrima se quer no fatídico dia 13 em que
Wigo nos deixou.
Mais
três dias se passam e ela continua postada na rede, serena, longe. A noite
chegou fria e sem vento. Ao amanhecer o vento se fortalece e a tudo leva.
Entretanto, a rede amanhece não só vazia por que ali ficou a flauta. Roupas
largadas na direção da mata como se fossem jogadas e no inicio da trilha, o
cachimbo entre os pertences e pegadas segue mata fechada adentro num silencioso
adeus.
FIM.