terça-feira, 26 de julho de 2022

UMA FAMÍLIA BRASILEIRA.

 Wigo andava por esses últimos dias com um incômodo que não sabia o do por que. O imigrante alemão veio à vila vender sabão e velas, enquanto sua roça imatura não rendesse frutos - mandioca para farinha, cana - de - açúcar para cachaça, banana para bolos - Ah! esqueci de dizer - a cachaça é a mais famosa da cidade, diga-se de passagem. Também repolho para chucrute - são para a sobrevivência. Velas e sabão para capital.

 Nosso protagonista, como

 todos os imigrantes, cheios de sonhos e poucas esperanças, dobrou a perigosa travessia do Atlântico a procura de uma vida melhor sabendo que precisaria de muita força de vontade e perseverança nesta empreitada aventurosa, pois, para os trabalhadores do Velho Mundo o que regia a vida naquele momento era a filosofia do materialismo histórico: construir com as próprias mãos as mudanças. Então, deu um passo, sendo o primeiro dos familiares a sair de seu país rumo ao outro lado do Oceano Atlântico. E pelo visto o primeiro a ver o mar. Engenhoso, para uns, louco e sonhador para muitos outros, encarou a empreitada, e não é hora de se arrepender dessa audácia.  Não ainda.

            Contudo algo o aflige. Algo coça em seu corpo, algo faz sua cabeça suar. Pode ser o calor talvez. Este bem melhor que o frio de sua pátria, indiferente às condições de miséria e fome que provocava entre os homens. O clima daqui incita o crescimento das plantas, com rápido resultado nos frutos do trabalho. A fartura daqui é sem igual. As frutas são as mais diversas: caju, manga, pitanga, repolho, pepino, tomate, pimentão, jabuticaba, goiaba, butiá, entre outros milhares de milhões.

           Wigo contratou negócio com um português chamado Mourinho. Esse homem de fala engraçada, bigode bem aparado com as pontas levantadas, baixo, pernas curtas e encurvadas, possui um moinho de farinha e um alambique de cachaça. Trocam produtos para poder usar o moinho vez ou outra. O português é casado com uma brasileira cor de melado, cabelos ondulados negros e longos, olhos desconfiados sendo de pouca fala. Diferente do marido tem pra lá de um metro e oitenta. Forte. Lavadeira. Gosta de uma bebida forte nos fins de tarde, aí, volta e meia, desce o braço no marido português. Acha quase sempre que seu homem a esta traindo com as mulheres da Casa da Dona Mafalda.

Wigo já viu Josefina, a mulher de Mourinho, pegá-lo pelos braços jogá-lo nos ombros e entrarem para casa. Essa tarde em que foi testemunha da cena atípica o casal havia bebido a bicas. Com esses olhos azuis céu que deus lhe deu viu a mulher se despir na frente da porta aberta e gritar com o coitado do marido, “como pode olhar para outra vagabunda qualquer na rua tendo "isso" pegando fogo em casa a espera dele para apagar sua vontade?”. A brasileira sacou um cinto e desceu a surra no português gritando: “vai olhar para outra rameira na rua de novo?”. O açoitado implorava aos berros por perdão e o sarrafo só sessava quando os olhos da mulher brilhavam de satisfação seguindo de um sorriso indecente que deixava Wigo com vergonha de presenciar aquela cena.

Não que Wigo gostasse de ser indiscreto, vigiando a vida alheia, entretanto, um espetáculo daquele não acontecia todos os dias. Pensava o que diria sua velha mãe sobre isso. Josefina não se dava ao luxo de fechar sequer as portas e janelas deitando-se com Mourinho no chão para terminar o que começou. Assim à tarde, testemunha monótona, caía por aquelas paragens.

Na vila e região moravam muitos conterrâneos de Wigo. Muitos homens e poucas mulheres. As que por ali viviam eram muitas vezes disputadas a chumbo ou facão. Outra situação inusitada para Wigo foi encontrar pessoas negras. Nunca havia visto pessoas tão diferentes. Homens e mulheres. Essas pessoas daqui tão diferentes das de sua distante e rebuliça pátria o perturbou no inicio. Acostumou-se então. Entendeu que pessoas honestas e maldosas são de todas as cores e todas as raças.

Retornando ao seu incomodo, algo o incomodava mesmo. Não conseguia descansar as ideias. Os conhecidos diziam que precisava encontrar uma mulher, casar, juntar os trapos. Pensou em procurar na difamada casa de Dona Mafalda uma garota. Viu homens se perderem e perderem tudo o que tinham ao frequentarem esse famoso bordel. Inclinado a não esperar pela promessa do pastor Kurtz de conseguir a ele uma esposa, resolveu por si mesmo procurar a resposta de suas angústias. Parou de frente ao cabaré de onde vinham risos e elogios soprados pelas mulheres de dentro da casa convidando-o a entrar, indeciso, não por esperar as promessas do pastor Kurtz já sabendo por línguas peçonhentas que o líder religioso tem na lista de pretendentes à noiva a mais rabugenta filha da Germânia, Sônia, pronta para pescar um marido. A Tilápia não seria ele. Ali ficou por lembrar dos homens destruídos pelos prazeres que ali encontraram. E tudo o que tinham gastaram. 

Por minutos ficou em um embaraço diante da porta da casa de Dona Mafalda e suas meninas. Duas das quais, lisonjeiras e simpáticas, borradas de maquiagens e pó de arroz o convidavam a entrar diante da soleira da porta. Com olhos maliciosos, línguas tentadoras, gestos e sorrisos, gracejos provocantes que o atiçavam. Wigo, cá com seus botões quase derrotados, fica indeciso, lutando contra uma frente de batalha interior pesada. Seus desejos carnais lutam contra a moral que recebera da família, da escola e da igreja, “Aquilo não é lugar de um homem de bem”, ouvia. A integridade daquelas moças, as histórias que ouvia de roubo, extorsão, e morte entre aquelas paredes, mesmo sendo inverdades contadas por vantagem ou venenosas vozes locais, o ancorava, temia também se perder e perder o controle de suas emoções. Ouvia que desejos são incontroláveis, perigosos, e a paixão por uma mulher o amedrontava.

Exemplos são milhares. Seu Ernestão, vizinho de Kelson, o norueguês, é um desses. Apaixonado por uma rapariga cor da noite deixou mulher e filhas fugindo para o Amazonas com a amante. O próprio Mourinho, seu vizinho português e seu casamento com a brasileirona! Aquilo só pode ser amor. Existem muitos boatos de feitiçaria nestas terras verdes. Imigrantes que resolveram viver entre nativos nos sertões mais profundos não são exceções. O embate, vencido pela razão o faz recuar seguindo rua adiante. A insegurança de se perder o fez suar frio. Segue, entre satisfação e insatisfação.

Wigo enquanto vende seus produtos, vela e sabão, meio distraído, procura por resposta para seu incomodo. Caminha, dá troco errado, vende outra vez fiado para seu Wolfgang que nunca paga o que lhe deve. Está esquisito mesmo.

Próximo ao fim da manhã é hora de retornar para casa, preparar velas e sabão a tarde toda. Compra fumo no armazém, linguiça, pão, decidindo que será esse seu almoço. Encontra ao caminho Luciano, com quem troca palavras em português e alemão. Luciano conta que estão montando um grupo musical e o convida. Wigo toca piano e acordeon. Luciano quer aprender e se ofereceu a pagar pelas aulas. Para Wigo uma oportunidade a mais para ganhar dinheiro. Luciano, apesar de sua origem, participa de um grupo de capoeira e jongo, convida sempre o amigo, como o faz mais uma vez, esse inclina que um dia aceitará o convite. Trocam mais umas palavras e despedem-se com um forte aperto de mãos.

Com seis passos aproximadamente Wigo esquece o amigo sendo inclementemente perseguido pelo seu incomodo e mal estar. Leva a cabeça um chapéu de palha com grandes abas que protegem seu rosto branco de pequenos olhos vivos e azuis do sol dos trópicos. Tira às vezes o chapéu para secar o suor da cabeça e testa que escorre. O luzente corpo celeste a pino força as pessoas a retornarem para casa ou se esconderem quando possível nas sombras refrescantes de árvores e casas.

Wigo decide seguir para casa quando pelo caminho encontra um grupo de índias vendendo cestos de vime e panelas de cerâmicas. Decide negociar com as mulheres nativas que formam o singular grupo a troca de produtos. Pequeninas, cabelos negros mais escuros do que uma noite de inverno em sua terra natal sem lua, lisos e brilhantes não esboçam reações a sua chegada. Nenhuma delas o repara. Olhares baixos e indiferentes. O silêncio domina o grupo. Passivas ao principal instrumento para venda comercial, a lábia, as mulheres dispensam sorrisos ou a fala simpática, características exigidas nessa disputada profissão. Wigo, sarcástico, sempre acha engraçado como são desconfiados. Não que os alemães também não sejam muito diferentes.

Sem disfarçar seu sotaque germânico pergunta o valor dos cestos que vendem as morenas mulheres.

- Quanto?

As índias se olham, trocam palavras de sua língua natural, discutem entre si sem se incomodarem com o homem ali interessado em seus produtos artesanais. Outra vez, Wigo tenta um contato apontando para o cesto. As mulheres de olhos negros, rostos redondos, lábios grossos não respondem, até que uma das jovens, três são jovens, decide dar um valor ao cesto. Rápida como o vento no alto das montanhas que cercam a região em sua resposta a moça deixa o jovem sem entender nada. Repete então o que entendeu apontando outra vez para o cesto, mais uma pergunta do que afirmação. A jovem assente com a cabeça afirmando sem muito interesse de dialogar com Wigo, e sem dirigir um olhar se quer a ele. Como todo bom alemão tenta negociar com alguma vantagem, ele insiste.

- Esse e esse, por dois mil-réis?

A índia é osso duro e firme no preço.

- Não, não. Esse quatro, esse três.

Essa bugre é esperta, pensa com seus botões Wigo. Arrisca se divertindo na negociata.

- Esse e essa por cinco?

- Não. Esse quatro, esse três e esse o mesmo. Parece zangada com a insistência do colono, dispõe-se de lado desprezando com esse gesto a presença do homem de língua enrolada.

Que bugrezinha danada, resmunga em alemão.

Decide depois de instantes silenciosos comprar os cestos e uma tigela de cerâmica. Como hoje sente algo diferente de outros dias, ou melhor, diferente de todos os outros dias de sua vida deixa inacreditavelmente perplexo com a ação algumas moedas a mais e um pão caseiro para as mulheres. Resolve ser gentil e se despede despejando seu sotaque germânico ao se levantar.

- Obrigado. Tenham um bom dia senhoras.

Levanta o chapéu despedindo-se. As indígenas começam a falar entre elas na língua natural a seu povo. Enquanto Wigo se vai. Caminhando para casa percebe ser seguido quando alcança os limites urbanos que forma a pequena vila colonial. Estaca os passos quando ouve um chamado feminino cheio de quase imperceptível.

- Alemão. Alemão!

Wigo espantado encontra-se sendo seguido pela jovem índia que vendeu a ele o cesto.

- O que quer? Interroga à jovem.

- Vou morar com você. Responde.

- O quê? Não! Não quero.

- Vou morar com você e ser sua mulher.

- Não! Volta. Não quero. Que ideia...

- Ideia de minha família. Decidiram e vim morar com você.

- Não. Irritado Wigo aperta o passo.

E quanto mais acelerava os passos assustava-se, pois a índia mesmo pequenina e de pernas curtas o perseguia.

Meu conhecimento zero da extraordinária língua germânica não me possibilita traduzir as palavras e frases proferidas de Wigo, irritado com a perseguição, explode, grita, até pedras joga na jovem cor de mel o que de nada resolve. Implacavelmente ela insiste na caçada.

- Nein! Nein!

Wigo resolve correr quando se aproxima de sua casa já à frente na esquina. Escancara o portão sobe enrolado com suas compras e vendas as escadas que dão acesso ao imóvel e rápido como um relâmpago bate a porta encerrando-a e tranca-a num som que mais lembra uma trovoada. Fecha as janelas e dos vidros vê a indiazinha invadir seu quintal até sumir do alcance de seus alarmados olhos. Indignado bebe um gole de água da moringa sentindo não ser o bastante para se acalmar toma uma dose da cachaça do alambique do português Mourinho. Lembrando-se dos vizinhos percebe estar sendo observado, logo confirma o que diz seus sentidos e vê Josefina balançando negativamente a cabeça em desaprovação a vida do vizinho que cuida da janela de sua casa. Fecha a abertura com violência depois de gritar ser uma indecência a vida que leva o vizinho. Wigo se irrita. Resolve preparar algo para comer e com o estômago cheio pode pensar numa solução melhor. Tem que fazer velas e sabão para a venda da semana. Isto está resolvido.

Inesperado os sons que ouve na volta de casa. Batidas, passos, contudo decide concentrar sua atenção na comida que prepara. Come. Quando se aprontando então para tirar uma pestana sente o cheiro de fumaça enlouquece. Abre a cortina que havia fechado de uma das janelas, observa com cautela e pelo canto da abertura evitando que a jovenzinha o visse que ela acendeu o fogão a lenha da varanda.

- Mas essa atrevida. Disse fervendo o sangue.

Tenta das janelas avistar a jovem nativa. Sem sucesso em vê-la, cansado, logo se desinteressa pela abusada menina. Deita-se no sofá após beber um pouco da cachaça do vizinho Mourinho que chama logo o sono que o encontra esticado nas portas da casa dos sonhos.

Mais tarde, arrastado de seu sono por um cheiro de milho e ovos que invadem suas narinas levanta-se esperançoso para descobrir-se livre da intrometida nativa, procura-a através dos vidros e janelas, que então cai por terra à alegria e a vê em uma rede, ou melhor, em um de seus lençóis que lavou pela manhã, deitada ali, cuidava de uma panela em plena fervura no fogão a lenha.

Wigo enlouqueceu. Tremia, enfurecido com a audácia da bugrezinha despeitada. Corado decide por fim nessa situação absurda. Quando avança à porta encara num quadro uma foto de seu pai. Paralisado, é alvejado por lembranças e palavras ainda vivas em seus ouvidos postergadas por seus familiares. Vozes austeras, mas de muito ensinamento. Além das vozes de seu falecido pai ouviu seu tio-avô, Guilherme, a avó Rosa, e em especial o avô Friedrich. A respiração acalma, o vermelho vai dando espaço ao branco de seu rosto como sinal de contingenciamento dos nervos. Lembra muito bem das palavras de seus antepassados: “antes de se apressar pense nas oportunidades”.

Agora com a mão no queixo, olhar longe, concentrado em seus pensamentos, decide ser prático, alisando os bigodes, olhos azuis faiscantes que exibem engenhosos cálculos cerebrais. Decide possibilidades futuras de ação. A índia pode vir a ser útil. Cozinhando, lavando, deixando mais tempo livre para Wigo produzir e vender mais velas e sabão. “pode ser uma oportunidade a vinda dessa bugrezinha”, pensa, animando-se.

Decide sair. Veste o chapéu de palha e um paletó. Segue ao rancho onde tem uma carroça, arria o cavalo Hermes e sai sem se dirigir à mulher que agora ocupa sua varanda. A jovem não se dá ao luxo de perguntar, sem deixar a rede, de onde cutuca a lenha com um tição excitando o fogo que cozinha algo. Em cima da chapa do fogão a lenha encontra-se um cachimbo de barro secando.

Wigo dirige-se a casa da família Kndt. Relata a Wagner Kndt os acontecimentos do dia e seus planos futuros. Wagner tem o sarcasmo estampado no rosto redondo, corado, o cheiro e a malícia dos olhos entregam que andou tomando umas cachaças, oferecendo a Wigo que aceita um trago só por educação. O amigo ainda diz que ajuda a clarear as ideias, abrir portas e destravar línguas. Grita a Frida, sua esposa, que traga um pouco daquele aguardente das Minas Gerais, voltando em seguida sua atenção a visita. O sorriso que abre logo é seguido de uma colocação filosófica sem as presilhas soltas pela bebida.

- Estas são terras de loucos. E nós alemães estamos entrando na brincadeira. Mas gosto daqui. Verde, clima bom e boa cachaça. Não tenha medo de brincar também.

Nesse instante aproxima-se Frida com pequenos copos de vidro e uma garrafa, com o famoso líquido branco dentro. Servindo-os tem o cenho serrado em reprovação. Wagner retruca com palavras em alemão prussiano. A mulher rechonchuda, loira, olhos azuis fortes, não deixa barato respondendo num tom de indignação, reprovação e discórdia a altura das palavras do marido. Wagner a segura pelas saias, puxa-a para seu colo sentando-a, cheira suas tranças, sorri para Wigo, inconsequente, enfia uma das mãos entre as pernas da mulher que não revida, e sim, cai numa gargalhada desabrochada e insinuante.

- Você, amigo Wigo, precisa de uma alemã assanhada como a minha. Essas índias tomam banho a toda hora e tiram do corpo o cheiro de mulher.

Wigo está vermelho.

- Vai mulher. Pegue uns vestidos das meninas e da sua irmã também que nosso amigo Wigo tem uma nova namorada. Ela não pode ficar andando por aí como veio ao mundo que nem eu resisto.

- Obrigado Wagner – disse Wigo ao amigo.

- Então toma mais um gole comigo.

Servido os copos, vira de uma vez na boca a bebida, estralando a língua seguindo com um tapa nas nádegas da mulher após empurrá-la de seu colo e essa solta um grito de dor cheio de meiguice, onde escapa um doeu.

- Sabe Wigo – recomeça ao mesmo tempo em que serve outra dose de cachaça nos copos – bebe, bebe. Como ia dizendo: melhor uma mulher que mulher alguma.

- O pastor ia me apresentar uma moça de família.

- Eu sei, eu sei. Mas aquela não ti serve. Digo, pois, sou teu amigo. Não lava, não faz pão, nunca conheceu homem e tem vinte e cinco anos! Dizem que quando vê uma moça bonita logo cola os olhos nela quase enlouquecendo as famílias da jovem. Esquisita, não?

Wagner ri descontroladamente, chegando a engasgar por falta de ar assustando o amigo que o visita. Contudo, com um aceno de mão indica estar bem, em meio a tosses roucas e incontidas. Acalma-se. Wigo não consegue se segurar e explode em gargalhadas sinceras e temperadas pela cachaça que já o deixam de língua solta.

- Esquisita, ora vejam!

Horas depois retorna. Após deixar no rancho a carroça tratar do cavalo Hermes subir os degraus de sua varanda com os vestidos nas mãos e jogá-los em cima da índia que continua deitada na rede que esticou fumando seu cachimbo, autoritário Wigo disse.

- Veste.

Entra em casa. Perdeu à tarde preciosa com Wagner e amaldiçoa-se pela bebedeira àquela hora do dia. Recolhe com dificuldade suas ferramentas, tropicando segue ao rancho. Antes, olha a mulher, deitada, pitando o cachimbo, olhando para ontem sem preocupação com a vida. Vê os vestidos ainda no chão e resmunga palavras soltas e tortas em sua língua natal, irritado com o pouco caso que a indiazinha deu aos seus presentes.

Assustado acorda abaixo de vassouradas e safanões de sua inquilina que resmunga palavras cheias de sotaque e cólera. Wigo percebe ser noite sentindo uma forte dor de cabeça, muito pior do que a surra que leva. Parece ressaca.

- Vai dormir em casa. Vai! Está fedendo! Bebeu cachaça e fica fedendo.

- Pare sua doida. Pare!

Wigo ergue os braços na tentativa de se defender das vassouradas.

- Sua doida. Me respeite!

- Cici! Sou Cici, não doida. Cici.

A vizinhança, sorrateira, observa a cena de trás das cortinas das janelas, ou da rua mesmo. Estupefatas!

- Alemão bebeu e não me deu nem um pouco. Vai dormir na casa não com os bichos.

- Sua doida! Que é isso?

- Para você aprender a lembrar de Cici. Fiz até cachimbo pra o alemão. Olha: toma. Pra você. Cici quem fez. Lembre então de Cici quando tiver coisa boa.

A jovem entrega o cachimbo a Wigo com fumo pronto para queimar. Espantado Wigo ora olha para Cici, ora olha para o cachimbo em mãos trocando arduamente de atenção. Antes de empurrá-lo para dentro, irritada, entrega-o uma tigela de cerâmica com espigas de milho cozidas o que o surpreende ainda mais.

Os dias passam e os projetos de Wigo encaminham-se sem maiores percalços. Mais velas, mais sabão e mais lucro. As roupas para Cici que o jovem conseguiu com o amigo Kndt ela rasgou assim que vestiu e se sentiu estrangulada, vestindo assim a parte de baixo, as vezes como saia, enrolava no corpo, porém, não uma única vez deixava os seios a mostra. Depois da visita de suas parentas, Cici aceitou vestir roupas de mulheres brancas.

Sob olhares indignados ou divertidos, dos moradores da vila, Wigo e Cici frequentavam bailes, feiras livres e mesmo as missas católicas dos domingos, o que não os impediam, esses olhares antipáticos, incrédulos e reprovadores, de participarem dos cultos luteranos. A vizinha brasileira esposa do português Mourinho sempre expressava sua reprovação com acenos negativos de cabeça diante da janela de sua casa com a vida do vizinho alemão e a índia. Resmungava sempre a mesma coisa: onde esse mundo vai parar.

As brigas continuavam. Wigo não conseguia mais chegar perto de seu fogão. Cici sentava vassourada nas costas largas do alemão, como ela insistia em chamá-lo. Os familiares de Cici visitavam-na de tempos em tempos. Não falavam com Wigo. Era como se ele não existisse. Conversavam na língua natural delas. Cici ainda enchia de presentes aquelas mulheres o que deixava Wigo enlouquecido e explodia com a índia quando iam embora. Muitos de seus conhecidos diziam a ele para não enfrenta-las, pois, corriam rumores de surras lendárias que muitos índios apanhavam das mulheres confrontadas nas tribos perdidas dos sertões brasileiros. Histórias de afogamentos, linchamentos e homens transformados em verdadeiros eunucos, ou, ao menos os que sobreviviam a essas mutilações selvagens.

- Selvagens. Palavras constantes no meio dessas histórias. Wigo comparava-as as atitudes dos europeus civilizados. Basta observar como os brancos tratam os africanos, escravizados como bichos; ou as populações nativas das Américas que resistem até hoje a dominação do homem branco, europeu civilizador.

As brigas entre os dois prosseguiam. Por anos mesmo. Até depois do encontro que tiveram no rio que circunda as terras de Wigo. Ao chegar para o banho semanal com sua toalha jogada ao ombro e sabão em pedra na mão, o jovem encontra Cici, nua - não que nunca a havia visto assim, por diversas vezes nesses quinze meses juntos ela arrancava as roupas do corpo e fugia para o mato. Wigo, sem saber por que ia atrás da mulher saia à caça da guarani, com seus cães. Encontrava-a sobre árvores, pedras ou cavernas pelas matas. Então laçava a mulher e conduzia-a de volta a casa. As primeiras vezes Wigo desfazia o laço e Cici dava no pé; lá ia ele, o atrapalhado outra vez atrás da índia. Logo consciente Wigo aprendeu: deixava a jovem amarrada por horas até ela dormir. Quando acordava, era outra pessoa. – então, nua, lambida pelo sol parecia diferente. Seus negros e brilhosos cabelos refletiam uma luz mágica. A felicidade e alegria de Cici ao ver o alemão chegar para o banho semanal o transformou.

Wigo, de queixo caído, estático, com um rubro que tomou conta de seu rosto. Cici, diferente sorriu seus alvos dentes com a beleza dos lábios convidativos e excitantes, cheia de lassidão. Insinua com os dedos um movimento convidativo para o alemão que não tem tempo para pensar e muito menos para resistir à vontade que dominam os dois há tempos. Naquele instante mágico, a tentação dos belos corpos, no rio atemporal. Amaram-se nas pedras, sob a vigília do sol por horas ou dentro da água corrente e congelante pela tarde afora.

Cici e Wigo tiveram quatro filhas. Tornaram-se as jovens mais bonitas e cobiçadas da Vila dona Francisca. Leopoldina, nome em homenagem a imperatriz, Marcela, Tipí e a única com a cor e cabelos iguais aos da mãe de nome Iamã. Suas irmãs puxaram ao pai, clara e loiras, olhos claros como caramelos. Grandes bolas ilegíveis. Muitos jovens perdem a cabeça e o juízo por elas. Verdadeiras batalhas foram logradas pelo coração das meninas. Surgiram ódios e rivalidades que ganharam gerações entre famílias por causa desse amor disputados a ponta de facas e pólvoras.

Nossos amigos caminhavam pela vida sem muitas mudanças. Wigo engenhoso de muitos inventos sempre em sintonia com as novidades tecnológicas que assombravam o mundo e com suas maravilhas que transformaram a sociedade assinou revistas científicas, comprava livros, trocava cartas com diversas personalidades de sua época. Discutiu evolução da vida com Charles Darwin, eletricidade com Edson, sonhou uma sociedade igualitária com Karl Marx e depois bem mais tarde com Rosa Luxemburgo de quem era admirador.

Escreveu artigos em jornais europeus debatendo as teorias freudianas. Inventou um mecanismo de cordas e engrenagens para facilitar o movimento do moinho que comprou de seu vizinho o português Mourinho. Esse ficou doido depois que a esposa morreu de uma doença desconhecida. Começou a beber aos baldes entrando num ritmo sem volta. Então Wigo comprou o engenho do português que sem mais razão de viver sem sua Joséfa afogou-se em um tonel de aguardente.

Wigo ensinou as filhas a ler e escrever, em alemão e português. Marcela e Tipí aprenderam Latim, francês e inglês tornando-se ótimas professoras e tradutoras. Leopoldina e Iamã tornaram-se com o tempo mais parecidas com a mãe. Cici passava muito tempo na rede fumando cachimbo e observando o vai e vem da natureza.

Marcela acompanhava o pai nas novidades científicas. Wigo inventou um pequeno motor movido a óleo para seu barco e a filha metia o bedelho nas invenções do pai, até desenvolveram, com a força do vento ao soprar alguns moinhos energia elétrica para iluminar sua casa e ofereceu a Vila Dona Francisca essa novidade moderna só vista na Europa e poucas outras cidades mundo afora. Trocando cartas com gênios da tecnologia foi capaz de alcançar essa invenção que mudará o século a vir. Contudo foi negada a instalação pelas ruas públicas.

Wigo amava as filhas e também a mulher, mesmo não demostrando com palavras e sim com atitudes que o tomavam de assalto como em dias em que a mãe das meninas embrenhava-se nas matas rumando a suas antigas terras seguida por Leopoldina e Iamã. Wigo tornava-se mais taciturno não falava muito e cuidava por mais tempo do portão e por mais tardes solitárias. Marcela nada dizia tratava o pai com mais carinho. Sabendo o que sentia e pensava.

Quando retornavam das longas viagens a alegria brilhava de volta nos olhos de Wigo. E outra vez a vida. Ouviam ao longe dentro da mata a conversa das mulheres. Por dias falavam na língua nativa da mãe o que irritava um pouco Wigo. Com paciência ele fingia ignorar. Sabia em seu intimo que logo voltariam a falar nas línguas a ele familiares. Cici não. Sempre em guarani ou uma mistura de português com a língua nativa. A Língua Geral. Continuava dando vassouradas em Wigo quando lhe convinha e nesses momentos gritava irritada com ele em português recheado de seu sotaque natural, quando logo se acalmava retomava a seus secretos pensamentos no balanço da rede.

Uma vez Cici sumiu sertão adentro com as filhas. Wigo teve uma coceira pelo corpo. Estranhou. Ao retornarem meses depois só Iamã acompanhava a mãe. Mais tarde sem motivo aparente Iamã informou ao pai que Leopoldina, ele já desconfiava de algo, precisava confirmar suas suspeitas, ficou na tribo, casou e estava grávida. A coceira aumentou em Wigo sem sossego. A saudade também o castigou sem sossego. Decidido um dia armou-se com o rifle de caça fabricado por ele mesmo, alguns pertences e alimentos. Vestiu as bruacas nas costas de Benéu, sua mula mais forte, e sumiu mata adentro, arrastando Marcela e Iamã com ele.

E Cici? Observou tudo em silêncio e descaso. Ao perder de vista Wigo e as filhas deitou em sua rede pendurada no mesmo local do primeiro dia em que pôs os pés no sitio de Wigo. Continuamente observando o vai e vem da natureza.

Três meses depois surgem na clareira onde finda a trilha que lava a mata Wigo e suas três filhas, Marcela, Iamã e Leopoldina contrariada e com um bebê de colo. Seguia o grupo Benéu e três cães já batizados: Tupã, Leão e Hércules.

Iamã retornou prometida a um jovem da tribo. Resolveu de imediato quebrar o silêncio e disse a mãe o que ficou resolvido entre as partes envolvidas, entre o pai e o cacique. Elas podem retornar e visitar os maridos, porém, o acordo só permite a ida definitiva quando Cici e Wigo deixarem este mundo. A jovem esclareceu a mãe que este ponto foi sugerido pelo próprio cacique por ordem de Tupã. Cici pareceu dar pouco caso para a situação mudando a posição na rede virando as costas para a filha. Sem palavras ou suspiros. O que dizer se o próprio Tupã ordenou?

Tipi foi para a corte estudar. Formou-se enfermeira, entrou para o movimento sufragista, anarquista e abolicionista. Escrevia a família enviando as novidades. Enviou uma foto sua usando calças! Comprou as encomendas pedidas por seu pai em outras cartas entre diferentes instrumentos musicais. Tipi trazia remédios e outros produtos quando visitava a família e a cidade. Recebia encomendas e com muito grado retornava com os pedidos. Deu de presente ao pai uma máquina de escrever e Wigo desmontou e a remontou todinha para aprender seu funcionamento e quais mecanismos compunham o aparelho. Com a filha Marcela tornaram-se os mais famosos e melhores consertadores de máquinas de escrever da província. Não pararam por aí. Rádios e instrumentos musicais entraram oficina de consertos de pai e filha.

Toda essa capacidade de Marcela afastava os pretendentes a casamento, pois, os rapazes a achavam inteligente demais e livre demais para eles.

Numa dessas voltas à casa do pai Tipi trouxe uma máquina de fotografia, a última novidade do mercado! Contudo sentiu que o homem estava triste com a partida da mulher e filhas para a tribo e estavam longe a longos meses. Na primeira oportunidade de reunião familiar bateu uma foto. A primeira de vinte e cinco que registraram. Servem hoje como documentos históricos da paisagem e da vila onde viviam.

Wigo montou com as filhas que ficaram com eles uma banda de música. Ficaram famosos nos bailes de toda a região. Cici sem nada dizer como era de seu costume fabricou uma flauta de bambu e entrou para o grupo participando dos ensaios e apresentações musicais. Tocavam sem discussões. As escolhas musicais eram feitas pela filha Iamã, sem bate boca ou rejeições.

Enfim, tudo na natureza tem um vai e volta. Wigo com seus oitenta e nove anos, no leito de morte, pede a filha Marcela que cuide dos animais das irmãs e de sua mãe. Disse que as amava muito, até mais do que a si próprio. Às dezessete horas e vinte minutos do dia 13 de junho de 192... E tal fechou definitivamente os olhos para deixar esse mundo que tanto amou.

Cici não entrou em casa como era de seu costume. Mantinha-se, por todo o mês em que Wigo permaneceu doente e na cama, em sua rede mais distante do que nunca em seus pensamentos. Nem no cachimbo tocou. Não escapando nenhuma palavra de seus lábios desde então. Não interrogava as filhas e netos sobre as condições do enfermo e não derramou uma gota de lágrima se quer no fatídico dia 13 em que Wigo nos deixou.

Mais três dias se passam e ela continua postada na rede, serena, longe. A noite chegou fria e sem vento. Ao amanhecer o vento se fortalece e a tudo leva. Entretanto, a rede amanhece não só vazia por que ali ficou a flauta. Roupas largadas na direção da mata como se fossem jogadas e no inicio da trilha, o cachimbo entre os pertences e pegadas segue mata fechada adentro num silencioso adeus.

 

                                               FIM.

A MALHAÇÃO DO JUDAS (BRASILEIRO)

 

- Chico!

Com o susto que levou o menino jogou ao ar os ovos que fritava na frigideira, numa reação imediata ao grito enlouquecida da mãe. Seus ossos gelam. A pele arrepia os pelos do braço e pernas. Franze a testa num não entendimento da gritaria com a qual a mãe entra em casa. Não lembra nada que tenha feito de errado nas últimas quarenta e oito horas passadas. Procura no fundo de seu cérebro há procura de um deslize proibido pelos mandamentos impostos pela mãe, mas, mesmo assim não se recorda. Pode ter escapado algo, entretanto, num esforço não consegue lembrar.

- Chico? Onde é que você está seu moleque desgraçado? Chico? – não é boa coisa, pois a mãe de Chico está enlouquecida.

Os ovos fritos espalhados pelo chão da cozinha acompanhado por dois pedaços de mortadelas dentro de um pão seriam o almoço do jovem estudante. Agora frustrado pelos gritos da mãe, ficou sem almoço.

- Chico! Seu maluco. O que foi que você fez seu moleque?

- Eu? O que foi que eu fiz mãe? – sua voz tremia como todo o corpo.

- O que você fez seu moleque? Você foi que você fez?

Dona Bia pega o filho pela orelha e o arrasta até a sala jogando-o no sofá. Saca, no mesmo instante o chinelo do pé e desce o braço no menino.

- O que foi que você fez? Quer que eu diga seu moleque filho de uma égua? Seu moleque irresponsável! O que você fez foi condenar a todos nós a morte. Foi isso que você fez!

As irmãs de Chico chegaram à porta para ver a gritaria. Vai dar bode hoje.

- Xí...

- Fica na sua intrometida. Se não vai sobrar pra você Vera! – Essa é a irmã mais nova de Chico – vai logo limpar a sujeira que esse moleque fez na cozinha!

- Ah... Não vou não. Por que só eu tenho que fazer tudo? A Sandra nunca...

- AGORA!

A menina sai batendo os pés e resmungando.

- E agora Chico? Sabe quem vai ter que corrigir sua cagada? Eu.

- Do que cê tá falando mãe? Tá louca?

- Ah! Seu moleque de merda! Toma aqui à louca. Toma! Desce várias vezes o chinelo no lombo do menino.

- Mãe, para! – Sandra interfere, segurando a mão da mãe, tentando acalmá-la, se metendo entre os dois e afastando a mãe de perto do irmão encolhido no sofá.

- Eu vou é matar esse moleque desgraçado – tenta empurrar a filha com o corpo e alcançar novamente o filho com o chinelo em punho, toda descabelada, com a roupa desarrumada e incontrolável na sua determinação de cumprir o que prometeu.

- Para, mãe! – a filha mais uma vez intervém em defesa do irmão.

- Para uma pinóia! Você sabe o que ele fez Sandra? Você não sabe.

- O que ele fez mãe? Você não se acalma e diz o que ele fez.

- Esse seu irmão sem vergonha e sem juízo escreveu o nome e as fofocas de um monte de moradores da comunidade no boneco do Judas que malharam ontem.

- A! Disso eu sei. A Suellen me contou.

- Você já sabia disso?

- Sim.

- E por que não me contou? Grita enlouquecida a mãe.

- Pra quê? Todos os anos isso acontece.

- Sim, acontece, mas a Maria veio me contar que esse retardado do seu irmão colocou o nome da Ivete, do Milton e do Sandrinho no boneco, e não é todo ano que alguém aparece por aí falando mal dos traficantes do morro e sobrevive até o fim do mês.

- Disso eu sei também.

- E esse inconsequente filho de uma chocadeira do seu irmão ainda desenhou um par de chifres num boneco indicando que era o Sandrinho que foi traído pela Ivete! E daí que todos no morro estão dizendo que o Sandrinho vai se vingar de quem fez isso com ele. – gritava enlouquecida Dona Bia.

- Eu nem quero saber. Vou pra aula, tchau! Despede-se chocalhando no ar as mãos acima da cabeça.

- Não vai não menina. E se você encontrar com o Sandrinho ou os ajudantes dele no caminho?

- Mãe... Eu tenho prova hoje, fui.

Vai ao quarto, demora uns minutos, retornando vestida com outra roupa, de mochila nas costas, dois cadernos na mão, passa pela sala onde estão a mãe e Chico, beija a mulher e sai.

- Você viu o que fez? Viu? – solta o braço a toda carga chinelando o menino encolhido no sofá.

As chineladas continuam por mais meia hora, enquanto machucam mais o ego do menino do que o corpo. Chico se lembra da conversa que teve com o amigo de travessuras, Marcelo. Juntos montaram o boneco do Judas e o penduraram no poste na noite anterior. Será que Marcelo está apanhando também? – pensa Chico. Marcelo indicou alguns nomes, entretanto, não concordou com outros, como o de Sandrinho, da Ivete que o corneou e de Milton.

Sandrinho é o chefe do tráfico no morro e sua palavra por aqui é lei na comunidade. Tem o respeito do exército de malandros que chama de soldados. Ganhou toda essa moral após expulsar do morro a milícia que dominava a mão de ferro a favela.

As milícias, formadas por policiais - aposentados, expulsos ou ainda na ativa - controlam a vida de muitas comunidades da região e de outros bairros. O comércio é especialmente cativo do poder dessas milícias. Cobram taxas que vendem em forma de proteção, não se sabe de quem, mas, o morador que se recusar a pagar é expulso do lugar e tem sua casa e loja entregue a outros que aceitam pagar a mesada, ou nos piores casos, são mortos na rua em plena luz do dia servindo de exemplo para a comunidade.

Controlam o tráfico de drogas e armas, a venda de gás de cozinha, a transmissão de internet e televisão a cabo, a prostituição, os “gatos” de luz também, os serviços de moto táxi, o jogo do bicho, distribuição de água, dominam os estacionamentos e postos de gasolina. A lista é grande.

Sandrinho veio e acabou com tudo. Ao menos mudou um pouco as regras. Não cobra mais dos moradores pela proteção e todos os “serviços” que as milícias exploravam e que tanto extorquiam os comerciantes locais. Contudo, sua palavra é lei. Sem o alcance dos serviços do Estado, esse vácuo de poder fica ocupado pelos mais peitudos, e neste momento é Sandrinho. Não existe perdão para traidores e dedo duros da polícia. A morte dolorosa é a punição. Vai para as “micro-ondas”. Todos são avisados por alto falantes espalhados pela comunidade sobre o “movimento” no morro. Até agora nada foi dito sobre a malhação de Judas do dia anterior.

Dona Bia soube pelas amigas que Sandrinho já tomou conhecimento e não reagiu. Manteve-se como uma estátua, parado, sem piscar. Sua única reação segundos depois foi entrar para o banheiro fechar a porta e ficar em silêncio. Dona bia não acreditou muito nas histórias contadas pelas mulheres. No beco onde moram, dona Bia e os filhos, também moram uma dúzia de fofoqueiros e fofoqueiros que gostam de vigiar a vida alheia espalhando o que viram e o que não viram por aí, são afeitos por prazeres inexplicáveis, gostam também de aumentar exageradamente os acontecimentos que assistem com os próprios olhos ou que recebem de fontes terceiras, ávidas por fantasiar as histórias que colhem de outras fontes espalhadas pelas ruelas do morro. Sempre com más intenções. Quem contou ouviu de terceiros, que ouviram de outros ainda mais mal informados que esses terceiros e que espalham com o gosto prazeroso da mentira que dona Bia ouviu antes de chegar a casa.

- É o que ouvi e estão dizendo por ai. – confirma quem correu na intenção de ser o primeiro a contar pra Dona Bia.

- E quem te contou isso? – disse dona Bia procurando saber à fonte.

- Eu estava passando pela frente do bar do seu Joaquim, lá na esquina, ouvindo seu nome parei de bicicleta um pouco mais a frente para ouvir do que falavam. E foi isso que escutei e te contei agora.

No fim ninguém sabia de nada.

 

Aquele dia Chico ficou em casa. Pediu a irmã Vera que chamasse seu amigo Marcelo para jogarem videogame. Marcelo, Chico e Vera estudam na escola do bairro onde fica o morro onde moram.

- Eu chamo, só com uma condição – negocia com o irmão.

- Qual? Chico pergunta já sabendo o que vem por aí.

- Jogar com vocês e... –

- Ei, é uma só.

- Então não o chamo. Vai você. Se indigna Vera.

- Diz logo o que quer sua chata.

- Quero um beijo do Marcelo e que você não conte para mamãe.

- Cê ta louca?

- Então não vou, tchau. Fui.

Vera não sai do quarto, cruzando os braços, continua de pé e de costas para o irmão.

- Então tá. Disse Chico. Sabia que o amigo não aceitaria beijar a irmã. Deu de ombros. Vai logo lá antes que eu mude de ideia. Disse por fim o jovem.

Vinte minutos depois, os dois, ou melhor, os três estavam jogando. Contorciam-se, faziam cara feia, ficavam em pé, combinavam os dois meninos telepaticamente através dos olhos que se encontravam na tentativa de derrotar Vera. Nada. Não conseguiam. Vera jogava todos os jogos melhor que os dois juntos. Isso estraçalhava com o orgulho masculino de superioridade dos dois meninos e jogava-os ao chão da humilhação.

- Agora chega! Gritou Chico. Tomando o controle da irmã. Vai procurar alguma coisa pra fazer, lavar louça, secar, ou responder o trabalho da escola.

- Ah, não Chico. Então vou contar pra todo mundo que os dois perderam pra mim no videogame. Ameaçou Vera apontando o indicador ora para uma ora para o outro.

- Cai fora do meu quarto! Dá um ultimato, Chico. Empurra a irmã na direção da porta que força o corpo contra para não sair do lugar.

- Eu saio sim. Só que tem que cumprir com o outro pedido que você me prometeu.

Vera faz a exigência olhando para o amigo do irmão. Um beijo do Marcelo. Vera senta ao lado do amigo encostando suas quentes pernas nas do menino que tem logo uma reação elétrica pelo corpo a esse contato.

- Sai fora sua chata! Disse Chico irritado.

- Manhê! O Chico não...

- Cala a boca, caralho!

- Não vai me beijar?

Vera dirige a palavra com muita malícia para seu pretendente. Os olhos castanhos esverdeados mergulham e grudam no fundo dos negros olhos do rapaz. As belezas juvenis se intensificam e afloram em toda a negritude de suas peles, ambos, herdeiros da força de seus ancestrais. São verdadeiras esculturas digno de comparação aos Orixás africanos. Seus lábios grossos pelos hormônios que inundam seus corpos. Corpos que vão tomando forma de homens e mulheres no inicio da puberdade.  Os olhos voltam aos lábios, agora umedecidos pela língua tentadora.

Desde que chegou a casa do amigo, Marcelo não se incomodou com a presença da irmã de Chico que já havia colado suas cochas nas dele deixando-o em estado de alerta total. Vera tem cabelo crespo cheio no seu corte, sua pele é brilhosa e não dá para dizer que tem um frescor, pois é quente. Marcelo não demora muito a se entregar aos desejos que o impulsionam e não permitem reações contra. Lasca logo um beijo naquela deusa. A menina, com sua língua ágil experimentam os lábios do rapaz que agora treme todo. Beijos que escraviza a vontade de Marcelo, que fica mole, ao menos as pernas e braços que tremem, então, seus olhos fechados são entregues ao desejo. Beijo, molhado e doce.

Chico nada diz. Continua jogando. Contudo o ciúme o devora. Ciúme da Irmã. Porém, se segura emburrado. Tem de cumprir o prometido. Vera satisfeita e em silêncio sai rapidamente do quarto e some. Chico bate a porta, demonstrando sua insatisfação com aquele ataque do amigo a sua honra. Nada disse mesmo assim. Volta a sentar calado retomando o jogo. Passam mais de duas horas sobre o véu do silêncio. Até que Marcelo quebra-o.

- Tenho de ir pra casa.

- Já? Disse Chico.

- Mamãe já vai chegar.

- Você não ouviu nada por aí? Chico interroga o amigo.

- O que? Responde Marcelo não entendendo bem qual o interesse do amigo.

- Da malhação do Judas? Disse meio irritado pela interrogação do outro.

- Ah, tá. Estão dizendo por aí que Sandrinho quer conversar com quem fez isso.

Disse Marcelo distante. Ainda anestesiado pelo beijo.

- Quem disse isso? Chico demonstra preocupação na voz.

- Ele mesmo, ora.

- Mas você ouviu da boca dele?

- Não. Mas é o que estão dizendo por aí. Na escola, no bar, nas ruas da comunidade, padaria, na entrada do morro. Faz uma pausa. E depois continua. Até no ponto do ônibus lá embaixo. Eu ti falei pra não botar o nome dele no Judas.

- Tu também tá fodido! – irritado Chico tenta jogar a preocupação que o acompanha para o amigo. Pressão.

- Eu não. Você é quem teimou em escrever essa história de Sandrinho ser corno.

- Mas tu me ajudaste!

- Eu não tenho nada a haver com isso. Já disse que não queria escrever o nome dele na lista do Judas só que você é teimoso e cheio de marra! Não ouve os outros. Cala-se. Talvez tenha falado demais. Porém, Chico nada disse. Marcelo deixa o controle de lado levanta de onde estava sentado há horas, dá uma tapa na nuca do amigo e logo dispara:

- Vou lá Brother! Valeu... Cunhado.

Depois de deixar essa, Marcelo passa embaixo da janela do quarto de Chico na direção do portão e o ouve cantando uma música que não consegue identificar. Chico fica gelado. Não sabe como resolver essa situação. Estica-se na cama. O fim de tarde trás uma brisa do mar que invade o aposento pela janela, essa brisa, arrasta junto o canto distante dos passarinhos, carrega consigo também os sons do asfalto, o som das ondas que quebram no mar e, de uma música que berra, ao longe, de algum rádio enlouquecido.

 

- Chico, por que você não foi pra escola? Seu moleque!

- Mãe? Disse Chico estranhando o horário. Sua mãe só chega bem tarde da noite.

- Vem aqui, seu danado, vamos falar com o Sandrinho.

- Não mãe não! Eu não quero morrer.

Chico e sua mãe rapidamente entram em uma sala mais parecida com uma repartição publica cheia de cadeiras azuis enfileiradas e um balcão de atendimento do que a casa de um traficante. Na recepção encontram-se os dois e mais um rapaz sem camisa, de boné vermelho e muito magro armado com uma metralhadora, indicando com o polegar uma porta pelo qual Chico e sua mãe entram. Passam por um corredor escuro iluminado no fim somente pela luz da televisão onde estão Marcelo e sua irmã jogando videogame.

Chico tenta perguntar o que os dois estão fazendo ali, contudo sua voz não sai e já não os vê mais. Adentra, ele, agora sozinho, em uma sala clareada por uma grande janela, onde uma imensa mesa sobressai na sala e atrás dessa mesa está um homem vestido de branco, com grandes correntes no pescoço e um boné branco virado para trás.

Olhando pela janela Chico enxerga (?) sua irmã e Marcelo na areia da praia, deitados sob o sol se beijando. Chico mais do que depressa pula pela janela como um raio desce pelos telhados das casas quebrando as telhas que logo parecem querer engolir ele como um imenso buraco sem fundo. Logo atrás estão os capangas de Sandrinho seguindo-o disferindo gritos e tiros na sua direção. A pesar de toda a velocidade que corre o menino não consegue sair do lugar. A sensação é de um peso enorme que o segura no mesmo lugar. Um medo terrível o faz gritar “eu não fiz nada”. De repente está ele em cima de um muro na beirada de um precipício enquanto corre tentando se equilibrar e não cair. Percebe que os homens de Sandrinho ficaram para trás. Logo aparece outro muro onde o menino se esconde. Permanece em silêncio. Tenta controlar a curiosidade e quando não resiste mais a força natural de olhar se está seguro ou não, uma mão toca no seu ombro. E o chama pelo nome.

- Chico acorda! É Vera chorando. Acorda! Vem um temporal feio aí. Eu tô com medo Chico! - Levanta assustado.

Vera morre de medo de raios, trovões e do vento. A coitada surta nessas horas. Chico olha o céu pela janela a imagem é de que o mundo vai acabar. Ao menos acordou do pesadelo mesmo que a realidade esteja levantando o telhado do barraco onde moram. O vento só não levou o telhado de amianto por causa dos pregos que o seguram, mas a cada rajada parece que não vai aguentar mais.

Os raios clareiam a tarde escurecida pelas nuvens com tons de fumaça preta e um esverdeado assustador onde rolam as nuvens, umas sobre as outras. Falando em raios a cidade toda, ou ao menos onde os olhos alcançam a eletricidade fora cortada pela tempestade. Chico fica intrigado com as horas. Olha para o relógio na parede da cozinha e vê que ainda são cinco horas da tarde, e, solta umas palavras de espanto pela noite escura que a tempestade adiantou com sua força.

- Meu caralho! Como está escuro!  

- Chico me salva! Sua irmã está descontrolada.

O telhado com o sopro do vento vai para cima e para baixo deixando nos cantos das paredes frestas por onde entram o barulho dos trovões, as luzes assustadoras dos relâmpagos e o vento derrubando quadros na estante, assobiando como nos filmes que se passam em lugares frios. Parece que tudo vai voar, até a casa, com Chico e sua irmã dentro.

Chico com a irmã agarrada na cintura volta para seu quarto, pega então o colchão de sua cama e junto leva alguns lençóis até a mesa da cozinha colocando-o por cima do tablado, volta ao quarto, agora no de suas irmãs, puxa o colchão da cama delas também montando um abrigo para proteger, ele e a irmã desesperada colada a cintura dele.

- Me larga Vera! Entra ai embaixo. Grita com a irmã.

Ela não descola dele quando um raio estrondoso rasga os céus produzindo um som assustador de eletricidade pelo ar. Um trovão estremece imediatamente todo o morro, levando os dois, e o restante da comunidade ao pânico. Chico usa toda a sua força para soltar a irmã da cintura e a joga para debaixo do bunker que montou. Então, sem menos esperar os dois cães da família se antecipam e entram para baixo da mesa, Barney e Frederico, se acomodam no lugar que deveria ser dos dois irmãos.

- Barney, saia daí seu vira lata, disse Chico, tentando expulsá-los do refúgio montado por ele.

O que recebe são dentes afiados com rosnados avisando para não tentar tirá-los de lá.

- Barney! Agora é Vera quem suplica.

Enquanto isso o telhado de amianto sobe e desce como se fosse uma onda no mar. Parece que a cada instante vai subir com o vento e não voltará mais, deixando-os expostos a intempérie de terror que se mostra a cada golfada de vento. Mais uma vez tentam expulsar os cães da mesa, e só o que recebem são as mesmas ameaças de dentes e rosnados. Então, para a surpresa dos irmãos o papagaio da vizinha, o Tico, entra na calma, caminhando no chão pela porta da cozinha em direção da mesa refúgio que já abriga os dois cães, e entre eles, Tico se enfia, contabilizando três refugiados, os cães não reagem, permitindo que o papagaio se esconda junto a eles. Chico fica pálido, incrédulo, Vera não tem tempo pra isso. É puro pânico.

- Não acredito. Disse Chico. Vem Vera.

 Chico e sua irmã vão para o quarto da mãe.

Chico abre o guarda-roupa da mãe e depois de empurrar os calçados e algumas caixas que ali se encontram entra pra dentro junto com a irmã fechando a porta e se escondendo no escuro como se isso os protegessem do temporal e do mundo. Depois de improvisar tudo abraça a irmã que de olhos fechados se encolhe nos braços de Chico e tapa os ouvidos. Agora é só rezar e esperar.

 

Depois de uma semana sem ir à aula Chico recebe a visita de seu amigo Marcelo. A impressão que Chico tem de sua visita é que ele está ali por outra pessoa, desconfia Chico de quem seja, do que pela amizade. O amigo olha para fora do quarto a todo instante impaciente.

- Como assim ninguém falou mais nada? Interroga Chico o amigo.

- Não ouvi mais nada, é sério. Meu pai sempre diz que antes da tempestade vem à calmaria. Pode ser que estão preparando alguma pra você. Sabe? Uma daquelas emboscadas de filmes que o perseguido nunca espera.

- Como assim?

- Dessas que esperam a vitima esquecer e então pega ele no flagrante.

Chico tem um princípio de vertigem e tremedeira correndo por todo o corpo um suor frio inesperado.

- Nem na escola? Nem a diretora perguntou por mim?

- Por que perguntaria?

- Ora, tem uma semana que não vou à aula.

- Sabe que você se dá muita importância? Tu tens esse defeito chato se quer saber. E além do mais, sua mana, Vera, disse para a “dire” que tu tá com dengue.

- E ela acreditou?

- Sei lá. Como vou saber?

- Tu és meu amigo ou não porra?

- Claro. Eu não to aqui? Cadê sua irmã?

- Não sei. O que tu queres com ela?

- Nada.

- E a Nádia? Tem visto ela por lá?

- Não ia ti falar, mas o Guto tá pegando ela.

Chico engole seco serra os dentes e pensa: filha da puta. Fica quieto pelo resto da tarde. Tudo se torna pesado e cinza como a cor das nuvens que cobrem o céu. Seu coração acelera quando se lembra de Nádia.

- Como você fez para convencer sua mãe de não ir para a escola? Curioso Marcelo tenta abrir uma brecha naquelas horas transpassadas de silêncio abafado e sufocante. Mesmo estando ali a olhar para a cozinha a todo o momento esperando alguém passar. Tem mais a atenção voltada para a porta que dá à cozinha do que no jogo.

- Eu saio, fingindo ir para a escola, e depois que ela sai para o trabalho, volto.

Marcelo parece não ouvir o que Chico disse. Muito mais preocupado com a porta do quarto e o movimento da casa.

- Tá esperando alguém? Chico usa de sarcasmo com o amigo.

- Eu? Não.  Vai que o Sandrinho aparece por aqui?

- Hah.- suspira Chico. Sabendo que Marcelo veio é atrás de sua irmã, isso sim.

- Você foi fazer essa merda de escrever o nome do Sandrinho no Judas, agora está aí com medo de sair. E outra: alguém precisa cuidar de sua mana se caso acontecer algo contigo.

Chico prefere nem dizer nada. Só o olhar que lança na direção do outro já diz tudo. Assim as horas passam até o retorno de Vera. Quando Marcelo vê que a menina chegou esquece tudo atracado com a ansiedade.

- Cansei. Vou indo. Disse Marcelo.

- Sei. Responde Chico entendendo o motivo.

- Chico? – Vera vai até o quarto do irmão tendo novidades a contar.

Para na porta do quarto quando vê Marcelo saindo, quase se trombam. Os olhos dos dois brilham enfeitiçados ao se encontrarem. Os sorrisos se abrem.

- Oi, disse Vera.

- Oi, responde Chico já que o amigo nada disse. O escárnio tempera sua voz.

Marcelo não esboça reação. Vera já viu que tem o menino nas mãos.

- Chico o professor de História mandou pra você a prova e um trabalho, responde e eu levo de volta. Ele disse que está preocupado contigo. Que se você quiser fazer ou não fica na sua escolha, porque está jurado de morte mesmo, então não tem o porquê estar preocupado com trabalho de escola.

- Agradece a ele pela força, ironiza Chico.

- Ah. Outra coisa que pediram pra ti falar. Sabe a Bethe? A gordinha irmã do Zeti? Disse pra mim que se você quiser ela vem aqui te consolar entre outras coisas mais.

- Que coisas mais? – inocente Chico pergunta.

- Aquelas “coisas” Chico.

- Sei lá que coisas! Grita com a irmã não entendendo.

- Ai Chico! Sexo, Chico! Parece que não entende. Irritada explode com o irmão.

- Tá louco! Nem quero.

- Porra Chico, vai dispensar? Eu pegava. Marcelo tira uma com o amigo.

- Hã? Eu ouvi isso mesmo? Vera impõe seu controle sobre o jovem namorado.

- Tô brincando – se desculpa Marcelo diminuindo de vergonha.

- Tadinha Chico. Disse Vera defendendo a amiga.

- Vai se foder. Chico não dá chance à irmã, sua paciência tem limites.

- Mas é isso mesmo que ela quer com você brow! Faz uma brincadeira Marcelo se esquecendo de Vera. Você nunca vai pegar uma mina de dezenove anos como ela, todo mundo já comeu, até... Opa. Cala-se quando olha pra Vera que está com duas pontas de faca nos olhos querendo matá-lo.

- O que você está querendo dizer com isso? Até quem a comeu? Posso saber? A menina emoldura a cintura com os braços.

Marcelo se encolhe querendo entrar pelo buraco da chave e sumir.

- Mas eu mereço. Sai dali Vera batendo os pés demonstrando um rancor com a fala do talvez ex-namorado. Muito mais é charme que ela sabe abusar muito bem nessas horas.

 Chico não tem mais reação. Cada dia que passa aumenta sua preocupação. Fica jogando seu game desinteressado. Parece estar em piloto automático. Sentado na cama deixa o corpo recair para trás apoiando na parede. Da janela chegam sons citadinos: latidos de cães; ronco de carros; alto-falantes que anunciam as promoções de algum supermercado da cidade e os ruídos mais distantes do cotidiano que acabamos não nos importando mais, pois, acostumamos.

Pela janela acoplada aos ruídos da cidade também invade a brisa do mar. Chico brigou com a irmã Sandra pelo quarto e conseguiu. Agora é seu. Dorme muitas vezes com as janelas abertas, contrariando as ordens da mãe que tem medo de bandidos. Espera dona Bia dormir e escancara as venezianas. Aí sim. Já viu dali o mar verde, azul, o luar brilhante, também o nascer do sol.

- Aí Chico. Tô indo valeu? – Marcelo ainda estava no quarto para surpresa de Chico. Que levanta o dedão em sinal de entendido.

Marcelo corre do quarto seguindo a menina que acabara de sair enfurecida. Chico escuta os gritos dele chamando sua irmã pela casa.

O jovem se estica na cama e fica a olhar o céu pela janela, após desligar seu game. Voam muito acima da cidade alguns pássaros que parecem brincar com o vento. Alto. Deve ser muito bom voar. Se pudesse voaria como essas aves, muito alto e pra bem longe. Fica a imaginar como seria poder voar.

- CHICO!

- Mãe? Eu dormi – pensa ao acordar com o grito de dona Bia.

- Eu vou te matar seu filho de uma jararaca!

- Xi - Vera já viu que vem bomba hoje.

- Por que não está indo pra escola seu filho de uma égua?

 

Espalhados por toda a comunidade existem alto falantes e caixas de som, de onde os “senhores do morro” dão suas ordens para os moradores. Todos sabem que algo de bom não deve sair dali quando esses aparelhos cospem zunidos e arranhões sonoros que invadem as vielas, becos, esquinas e escadarias, que rasgam a comunidade como veias e, ao invés de transportar sangue, como ocorrem algumas vezes, veicula péssimas notícias.

- Atenção, moradores. – zunidos doem os ouvidos – Atenção... Zum... Zum... Zumm... Atenção! Ô Caveirinha? Zum... Essa merda... De um jeito... Zum.

- Perá aí chefe! Zum... Aqui ó. Agora tá OK! Mete bala, patrão!

- Então, ilustres moradores do meu morro, vizinhos e amigos: ontem, como todos sabem o Americano de Campos perdeu pro Pó de Arroz no Maraca. Entenderam? É luto então, raça. Luto na comunidade. Tô carente. Marcela? Sobe aqui no Q.G. preciso de seus carinhos. Antes que façam bobagem nada abre após as sete da noite, valeu? Nem igreja Evangélica, nem padoca, nem moto táxi, nem nada. Agradeço a atenção desde já. Marcela? Cadê você? Vem me salvar princesa.

Quando ouve o zunido das caixas de som espalhadas pelas vielas do morro, Chico gela. Nada de seu nome ser cuspido pelas caixas na lista de “condenados”. Meses atrás nomes eram entregues quando a guerra pela venda de drogas estava em disputa. A lista dos condenados incluía dedo-duro da polícia, pessoas que se negavam a esconder traficantes em casa quando necessário, ou mesmo os que tomavam partido ao grupo rival que queria assumir o tráfico na comunidade. Acabar nessa chamada não é o sonho de vida de Chico.

À tarde dona Bia fica sabendo, pela língua venenosa das vizinhas, o que está acontecendo com seus filhos, às visitas constantes de Marcelo e o desaparecimento de Chico das aulas. Essa parte de que seu filho vem gazeando as aulas já há uns dias é entregue pela filha mais velha de uma das abelhudas da rua, a menina Rosa, apaixonada por Chico, disse, meio com sabor de vitória por Chico não dá bola pra ela, que sente saudades da companhia do amigo de sala.

- O quê? Exclama dona Bia, já fervendo.

- É sim. Tem uma semana que o Chiquinho não aparece na escola. Estou sentindo muito a falta dele. A senhora dá esse recado pra ele por mim?

- Ah, querida. Com certeza eu digo isso sim a ele. Pode deixar. Já doida de raiva pede licença as abelhudas da viela.

Após ouvir a noite inteira e pela manhã seguinte sua mãe berrar com ele, proibindo-o entre outras coisas de jogar e de receber seu amigo Marcelo por conta de sua irmã mais nova correr risco desnecessário com esses sem vergonhas desses moleques que ali vão sem ela saber, fica obrigado a lavar a louça deixando tudo limpo, e se não estiver quando chegar ela vai mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Está avisado.

Ao se queixar de ser o único culpado e sua irmã que anda se engraçando para o lado do amigo, dona Bia ergue a voz e se impõe como toda mãe deve fazer.

- Você é o mais velho! A obrigação de proteger sua irmã é sua! Ela ainda não tem juízo, decreta dona Bia. E vai ter de passar de ano.

Dona Bia soube que o marginal Sandrinho anda planejando uma coisa bem cruel para fazer com seu menino, por causa daquele maldito boneco de Judas e não há nem um parente que possa ou queira esconder seu filho por um tempo.

- Não foi só o nome dele que estava no boneco... Resmunga com a mãe Chico.

- Não Chico. Não! Não foi só o nome dele que estava no boneco. O problema é que ele é o chefe do tráfico aqui da favela e algum idiota entregou que ele estava na lista dos cornos do morro.

- Não fui só eu quem fez o boneco.

- Só, meu filho inocente, que seu nome é o único que corre pelas ladeiras da favela. O meu problema é você Chico. Os outros não me interessam. Trabalho tanto nas casas das madames pra quê?

E assim, falando, gritando, silenciando, e outra vez irritada inicia tudo de novo com a ladainha durante a sexta-feira, o sábado, o domingo até dormir.

Chico, de sua janela assiste esses dias passarem. Pipas coloridas escorregavam pelo céu, de várias tonalidades: verdes, amarelas, vermelhas e brancas. Quando menos se espera tem o zunido das caixas de som que o arrepia e o gela na espera da sentença de morte já entrando pela sua imaginação aterrorizada dos últimos dias.

Zum... Zum.

- Aí, galera das pipas!

Aliviado quando ouve a voz metálica zunindo no ar para quem está empinando as pipas.

- Aqui é o Caveirinha, porta-voz do Comando do morro. Tirem as pipas do céu que precisamos comunicar a moçada da praia que chegaram as mercadorias, valeu? Outro recado: pela derrota do Americano ontem à noite para o Bangu, o luto continua e o hino do time do coração de nosso patrão será tocado essa tarde. Obrigado comunidade e boa tarde a todos.

- Como se tivéssemos opção de não ouvir isso. Sussurra a si mesmo Chico.

Logo as coloridas pipas que admirava desaparecem permanecendo somente uma delas a rabiscar o azul. Em seguida o torturante hino do Americano preenche à tarde, empurrado pelo vento do mar a todas as direções.

- Não acredito, resmunga Chico.

Proibido de sair de casa a janela é a única comunicação com o mundo. Proibido de ver televisão e acessar a internet terminou até o trabalho da escola por falta do que fazer! Releu os quadrinhos que tem; lavou a louça, limpou o banheiro; arrumou as camas e lavou o banheiro. Sua permitida distração é a janela.

Permitiu-se avançar mais do que a mãe decretou e encostou-se a porta. Sentiu logo que não teria paz com os olhos colados nele à filha da vizinha intrometida, mordia os lábios, desejosa de tê-los colados aos lábios de Chico. Bateu a porta ao entrar em casa, pois não aguentava mais aquela intrometida o desejando.

- Que nojo. Retalha.

- Tadinha, Chico. Vera provoca o irmão, sabendo do que se trata a ranzinza que o domina.

- Cala a boca! Se não eu ti mato! Estica o dedo indicador no nariz da menina em ameaça a gozação da irmã.

- Vou dizer para a mamãe que você me bateu!

- Fala, pode falar! Não estou nem mais ai. Dá de ombros.

Volta à janela de seu quarto o ultimo refúgio de um prisioneiro condenado.

- Será que Sandrinho vai ti matar? Solta essa Vera seguindo-o até o quarto.

Não respondendo nem tremendo mais de medo, suspira vigiado pelo mar, pelo céu azul e uma pipa vermelha que compõem com os telhados a paisagem urbana de sua janela.

- Eu não quero que você morra Chico. Disse Vera carinhosa deitando no colo do irmão, abraça, então, o travesseiro sentindo o cheiro do irmão que tanto gosta, sorri sonolenta, deixa um sussurro escapar todo meloso.

- Sabe que eu ti amo não sabe, mano?

Chico silencioso faz um chamego nos cabelos da irmã. Enquanto o hino do Americano adentra pela janela sem Chico dar mais importância à música soprada pelo vento. Sua atenção está voltada aos distantes murmúrios inflados do asfalto lá no pé do morro. Pessoas que gritam, cantam, carros, buzinas, risos, sons citadinos.

Da janela Chico percebe uma pipa nos ares feita de folha de caderno. Para lá e para cá, voltas em si mesma, rodopia em direção à pipa verde do tráfico e corta-a!

Só pode ser o Ricardinho, sussurra Chico. O menino é surdo, bom pra ele, pensa o jovem de castigo, ao menos não precisa ouvir esse hino idiota a tarde toda. A música silencia.

- Graças. Dispara Chico.

- Moradores, atenção: quem está empinando essa pipa aí? Pinel? Pinel! Deve ser o Ricardinho. Ele é surdo! Vai lá na casa dele e tira aquela pipa do céu agora, falei? Então moradores, resolvido os problemas momentâneos voltamos a nossa programação normal. Aqui quem vôs fala é o Caverinha, porta-voz do Comando. Boa tarde comunidade.

Terror! O hino do Americano.

- Esses desgraçados ainda querem falar bonito.

Pinel era seu amigo de escola. Acabou quando o amigo entrou para o tráfico. Vera na provocação constante contra o irmão mais sonolenta do que acordada sorri e escarna com o irmão.

- Até que o Caverinha é bem bonitinho.

- Eu ti mato se ver você com esses bandidos.

Chico levanta da cama, irritado com a irmã que se ajeita na cama não perdendo a oportunidade do soninho da tarde. O hino do clube fluminense continua na tarde sonolenta e tediosa no alto do morro.

No dia seguinte Chico é obrigado a ir para a escola. Ouve piadinhas sem graça dos colegas e do insosso professor de História.

- Oi turista. Quem tá vivo sempre aparece. E é bom enquanto está vivo continuar os estudos. Nunca se sabe o dia de amanhã. Chico nada diz. Não tem vontade de rebater essas pilhérias aporrinhadoras. Encontra o amigo Marcelo.

- E aí Chico. Mais um dia vivo?

- Não. Sou uma assombração. Satiriza a situação sem vontade, entretanto, é como se sente.

No mesmo instante, duas alunas do colégio, pretendentes a vaga de cunhada de Vera, passam pelos meninos de braços dados sorrisos largos e olhares brilhantes maliciosos na direção de Chico. Uma é a filha da fofoqueira e vizinha do jovem, Rosa, e a outra a amiga de Vera, a de dezenove anos Bete.

- Oi gatinho. Ela quer te morder! Disse Rosa apontando o dedo para a acompanhante Bete.

- Não! É ela quem quer te pegar!

Saem dando risinhos de alegria juvenil e puberdade implícita.

- Pega a gordinha, Chico. Aconselha Marcelo ao amigo.

- Pega você! Retruca irritado o jovem.

- Já andei por ali. Cansei.

- Ah! Você não deu conta.

- Vai nessa. Eu acabei com a mina.

- Mentiroso você hein, Marcelo? Sua fama por aí não é boa.

- Pergunta pra tua irmã então.

- Ei. Dá um tempo, vai?

Chico senta com a cara de quem devorou algo e depois não gostou. Tenta se enganar imaginando que é o calor que faz, porém, sabe que uma confusão transformou sua vida.

Na saída da escola que sempre é um momento impar, apesar de cotidiano, Chico se afasta de todos e, por nenhum motivo aparente, decide o que fazer. Na mente um pensamento trás uma luz na solução dessa situação que se arrasta desde o dia fatídico da malhação de Judas e a ameaça iminente de ser castigado pelos criminosos de Sandrinho chefe do tráfico de drogas do morro onde mora. Decide não acabar como o Boneco: queimado em pneus, como dizem, no micro-ondas, ou enforcado na jaqueira da pedra suja, no alto do morro. Agora que fiz a besteira de botar o nome dele no Judas tenho que corrigir o meu erro. Pensa o menino. Tenho que encarar como um Homem que sou se não corrigir o que fiz, eles podem matar todo mundo lá de casa, mamãe, Vera e Sandra. Sendo que a culpa é toda minha.

Voltando para casa Chico diz a irmã:

- Vera, vai para casa que vou resolver um “pepino” agora. Depois eu volto.

- Que besteira você vai fazer Chico?

- Nada. Não diga a ninguém. Depois eu volto. Agora vai direto para casa se eu souber que tu andaste por ai com o Marcelo eu conto tudo pra mamãe e ainda quebro a cara dele.

- Seu chato. Disse Vera, com zanga.

Chico segue outro caminho. Um beco de escadarias e curvas que levam ao alto do morro. Nunca havia subido tão alto. Pelo caminho se admira com a quantidade de vida que existem nas alamedas da comunidade. Gente. Muita gente! A cada curva, gente! A cada degrau, gente! Nas portas das casas, gente! Conversando, rindo, brincando e brigando com filhos, maridos e mulheres, brigando com pais e cães sendo chutados de dentro das casas. Varrendo a sujeira para a pequena rua, batendo tapete e pés sujos para voltar para dentro, enquanto os mesmos cães sentados do lado de fora esperam uma autorização, ou distração mesmo, dos donos e donas para furtivamente entrarem nas casas limpas diariamente; das janelas gritos de “sai daí”, ou “vai lavar a louça, Gina”, recebendo a resposta de que “hoje é a vez do Márcio, mãe”; a explosiva televisão no volume mais alto na tentativa de abafar o som alto do rádio do vizinho que estoura com os tímpanos de qualquer filho de deus, cuspindo ondas sonoras sem a menor preocupação se incomoda alguém ou não; pessoas sentadas na frente das portas que cumprimentam, ou ignoram os passantes; sentadas em cadeiras ou penduradas nas janelas conversam coisas diversas, acendem cigarros ou se abanam com panos de pratos e camisetas na tentativa de aliviar o calor que domina a cidade; o cheiro de linguiça frita assalta as narinas de quem por ali passa; uns gritam que o cheiro tá bom, enquanto outros se animam num autoconvite na tentativa de desfrutar do que roubou sua atenção; feijão bem temperado, jiló e peixe frito, desvirtuam a férrea decisão de Chico de continuar subindo; imediatamente vence a tentação enquanto desvia de moradores sentados no meio da pequena viela, engraçadas pessoas que sorriem e não se incomodam com os passantes; tudo regado a cerveja; homens sem camisa discutem sobre futebol enquanto espumosas cervejas geladas são esvaziadas dos copos de vidro de um pequeno bar inclinado seguindo a linha da ladeira e escadarias; meninas penduradas nas janelas batem papo sobre coisas de seus interesses quando diferem o jovem que chega por ali – Chico; esse desligado dos olhares que o admiram, imagina-se como um cavaleiro medieval seguindo para um duelo mortal pela mão de uma bela princesa desesperada por sua salvação – mesmo que essa princesa na verdade é sua própria vida, de sua mãe e irmãs – o que não deixa de ser um adubo para a imaginação pouco fértil desses últimos dias pelo que tem passado o jovem Chico.

O jovem então para e assombrado com o visual deixa uma exclamação escapar se sua boca:

- Nossa!

Respira ofegante enquanto vislumbra toda a beleza de tirar o folego de qualquer um. O mar verde que encontra com a linha do horizonte, recortado por ilhas enfeitadas de pedras e mata. Nuvens desaparecem no infinito horizonte. Dali Chico descobre duas ilhas a mais que não vê de sua janela. Enquanto recupera folego perdido na subida alimenta os olhos com a beleza natural do mundo. Aproveita para fazer pose para as meninas que conversavam na janela de uma das casinhas que compõem as moradias do morro. As três moças murmuram entre elas animadas pela presença do garoto ali parado. Risos com deboches anunciam seus interesses em saber quem é ali, aquele que se exibe nos degraus da escadaria sem fim da subida da favela. Entre as risadinhas manhosas e murmúrios distingue o nome de sua irmã Sandra fingindo que não é com ele. Uma das moças vencida pela curiosidade que as desafiam toma coragem e chama o rapaz para a conversa interrompida com sua chegada.

- Ei, menino. Você não é o irmão da Sandra?

- Sou sim. Responde com simpatia Chico após deglutir com os olhos a beleza das moças que o encaram com curiosidade.

- Viu, viu? Eu não disse? Riem entre si.

- Vocês sabem onde mora o Pinel? Aproveita o interesse das meninas.

- Na próxima esquina, num sobrado amarelo. Aquele idiota é meu irmão. Devem estar esperando os traficantes mandarem ordens. O que quer com ele, coisinha?

- Ele é meu amigo. Quero trocar umas ideias com ele.

Chico corre os olhos por todo o corpo da moça que responde ser irmão de quem procura. Dos cabelos aos pés, dos pés ao rosto. Iluminado por um sorriso mais lindo do que todas os entardeceres e as alvoradas de séculos sucessivos. Algo em Chico reage endurecendo seu pênis como uma barra e ferro. Encarando a jovem, que também tem suas artimanhas e reações físicas, químicas e biológicas pelo corpo, o rapaz imagina despindo a moça de suas roupas a deixa-la nua pronta para o amor. Arrebatado pelos dentes alvos, lábios grossos, em um rosto desenhado em perfeição de dar inveja até a mais ciumenta e egoísta das deusas da beleza de todas as mitologias que existiram e ainda existe a jovem arrebata de uma vez por todas o coração de Chico.

- O que foi? Disse a jovem maliciosa.

Chico, ainda por segundos, imagina-se casado com a deusa a sua frente. Imagina o que faria com a moça... Tem então quase um momento de jogar tudo para o alto esquecendo o que viera ali fazer para conversar com a beldade a sua frente na tentativa de conquista-la eternamente quando relembra da sua missão. Necessita de muita força de vontade para se libertar do hipnotismo colante do olhar sedutor da jovem. Quando se livra por um milésimo de segundo se despede das panteras de peles brilhantes e negras.

- Valeu!

- Pede o telefone dele sua boba! De risadinhas charmosas e murmuradas Chico ainda escuta essa deixa enquanto se afasta.

- Pede você.

- Eu pegava esse gostoso.

- Vai sua metida.

- Se você não for eu vou mesma.

- Tu é uma “vagaba” mesma.

- Não é o que dizem por ai? Sou mesma.

E riem.

- Depois eu peço a Sandra o número de celular dele.

- Tchau gostoso!

- Quem sabe não vai ser ele quem vai tirar seu “selo lá”?

- Quem sabe? Alguém um dia vai tirar.

E riem soltas de alegria e felicidade.

A conversa se perde pela viela que sobe. O nosso herói chega a frente do sobrado amarelo indicado pelas meninas mais abaixo. Tenta ouvir algum barulho vindo de dentro da casa. A morada de dois pavimentos fica exprimida entre outras duas casas e essas outras duas são exprimidas por mais outras e, assim, sucessivamente são esmagadas por outras mais. Por todo o morro. Quanto mais sobe pelas escadarias, vielas ou estreitas passagens íngremes, sinuosas e cansativas, mais evidente ficam a falta de espaço, a desorganização para a construção das residências por causa da inclinação vertiginosa do morro e falta de planejamento. Inscreve-se aí a oportunidade de ter uma casa própria quando não há em outros locais, tomado pela falta de ingerência pública, pela ganância dos gestores da cidade em conluio com grandes exploradores imobiliários privados reproduzindo a desorganização urbana de nossas cidades.

Escuta então uma música fugindo pelas aberturas da casa. Deve ter alguém, sussurra consigo mesmo, Chico.

- Pinel! Grita então.

Nada. Sem resposta.

- Pinel. Outra vez.

Aguarda.

Ouve passos vindos da parte de cima do sobrado.

- Chico? Um jovem dá as caras assustado com a aparição do jovem.

- Onde você está? A ofuscante luz do sol impede que Chico veja onde está quem procura.

- Em cima Chico, na laje.

Com as mãos faz uma barreira para proteger os olhos da claridade do sol, vê no alto o amigo, o qual a muito não via. Cortaram relações desde que Pinel deixou a escola e entrou para as fileiras do tráfico.

- Sobe aí. Do alto o morador da casa convida Chico a subir.

Chico com cautela abre a porta da entrada. Meio apreensivo procura uma escada que leve ao andar de cima enxergando somente quando os olhos acostumam com a escuridão da casa. Sobe devagar as escadas, entra numa sala de grandes janelas e uma porta que leva até uma varanda. Cadeiras e tijolos que empilhados formam uma churrasqueira são os móveis do espaço. Alcança o beiral da varanda surpreendido outra vez pela hipnotizante paisagem debruçada pelo mar.

- Chico sobe aqui. Pinel está em outra escada essa leva a laje superior.

Nosso protagonista sobe em silêncio. Sentado em uma cadeira de praia com um rádio está o Pinel, com um comunicador, garrafa de refrigerante, um prato com restos de comida e o que mais rouba a atenção de Chico: uma submetralhadora. Pipas também estão deixadas de lado, de diferentes cores. Chico cumprimenta o amigo.

- Quem tá vivo sempre aparece, graceja Pinel com o outro.

- E ai Pinel? Como você está, irmão?

- Susse. E cê? Suave?

- Suave na nave. E o bonde? Como que anda?

- Suave.

- Que visual maneiro daqui, hein?

- Que?

- A paisagem...

- Uma hora cansa. Responde Pinel.

- E essa metranca ai? Chico finge interesse na vida bandida do amigo. Realmente sempre quis distância desse mundo do crime. Os moradores das comunidades têm suas vidas entrelaçadas com essa realidade, quer queiram quer não.

Pinel nada diz. Chico não insiste.

- O que veio fazer aqui véio? Pergunta curioso Pinel.

- Quero falar com o Sandrinho. Responde Chico.

Pinel por um momento encara o amigo de infância. Dirige os olhos ao horizonte e assim silencia. Em seguida esvazia o copo de refrigerante que enche e depois oferece ao rapaz que ali se encontra depois de tanto tempo. Chico bebe. Está quente. Nada disse. Bebe.

- Tu sabes Chico que depois que entrei para o bonde do Sandrinho morri?

O amigo não entende o que o outro quis dizer com isso. Expressa no rosto um desenho de que não entendeu.

- Depois que entrei para o movimento não posso fazer mais nada da; não posso sair do morro, não sou mais dono de minha vida. Estou morto. Qualquer passo em falso e a rapaziada me apaga. Como disse uma vez o caveirinha: bandido não morre de aposentadoria e nem desce do bonde depois que entra. Só morto.

- Esse cara é chato com aquele rádio. Chico deixa escapar essa sem pensar.

Pinel dispara uma gargalhada.

- nem me fale, depois disse com sorriso triste nos olhos e lábios. O que você quer com o Sandrinho?

- É sobre o rolo lá do boneco do Judas que malhei.

Agora quem não entende é o Pinel.

- Pensei num momento que queria entrar para o tráfico. Já ia botar você pra correr daqui. Do bolso da bermuda retira uma carteirinha. Entrega a Chico. Pega! Diz que falou comigo. Assim tem salvo conduto.

- É sério isso?

- Claro! O crime aqui é organizado. Tá pensando o que?

- Valeu Pinel. Saudades de nosso tempo. Apertam as mãos.

- Também Brow! Dá um abraço na tia Bia por mim.

Chico se levanta pronto para partir quando não resiste e decide falar ao amigo.

- Sua irmã tá linda hein?

- Se não fosse minha irmã, véio, olha, não perdoava.

Gargalharam com gosto e vontade.

- Vou passar pelo rádio que você tá na subida.

Chico agradece. Quando se encontra na rua após beber uma água gelada na casa do amigo, é interceptado por homens armados de frente a um portão alto como em uma fortaleza, anuncia que precisa falar com o Sandrinho. Num particular.

- Chefe? Tem um moleque querendo trocar uns diálogos com vossa senhoria. Passam um rádio.

Chico sua gelado, treme de medo, para, na beira de uma piscina, escoltado por quatro soldados do tráfico armados até os dentes. Surpreende-se com um homem dentro da água que, aparenta não ter vinte anos.

- Quem é esse piá? Questiona Sandrinho.

Encostado num dos cantos da piscina de lajotas azuis marinhos, lembra mais um daqueles ricaços dos bairros elitizados da cidade do que o dono de uma boca de fumo do alto de um morro. Olhos injetados vermelhos, em brasa. Assim que vê o grupo chegando coloca uns belos óculos escuros com delicadeza. Tem uma garrafa de caro uísque aberta com um copo e gelo. Voz fina, barba bem aparada que segue a linha do rosto até o queixo. Brinco de brilhantes que enfeita uma das orelhas, a esquerda, chama os olhos o grande relógio tipo cebolão no punho direito, correntes grossas de ouro e prata confundem-se com os guias de santos criando uma mistura muito esquisita até o meio da barriga. Os peitos nus, seus pelos raspados exibem nos mamilos dois pircings que desconcertam ainda mais Chico.

Dentro da piscina Chico percebe que o traficante usa sunga com desenhos de palmeiras tendo ao seu lado junto as bebidas um rádio comunicador, uma pistola dourada e uma submetralhadora também dourada parecendo ouro. A voz esganiçada entre os dentes, meio afunilada pelo nariz, quebra a divagação incrédula de Chico já que o tom tem ameaças a ele e mesmo aos comparsas que fazem a segurança do morro e de seu Rei absoluto.

Chico se questiona o que está fazendo ali. Devia ter fugido enquanto podia!

- Ô caveirinha? Pra que nós tem esse Óki-Tók, seu fio di uma puta?

- Para falar, se comunicar a distância chefia.

- Então seu piá de bosta. Por que não chama pelo Óki-Tók que cê carrega por aí? Aí eu não perdia meu tempu atendendo quarqué fio di uma puta qui o pariu qui vém aqui pedir arguma coisa. Quem liberô ele vir aqui?

- O Pinel, chefe.

- Tá cum a carteirinha? Dirige a pergunta ao Chico, Sandrinho.

- Sim. Caveirinha intervém e responde pelo menino.

- O qui ele qué? Entrar para o bonde?

- Não senhor, Chico inesperadamente responde, há pouco começou a se arrepender desse ato de coragem que o jogou para cima do morro ao encontro desses doidos, e agora sabe que fora um erro gravíssimo que cometeu. Seus impulsos ainda vão atrapalhar muito ele já disse uma vez sua mãe.

- Eu não perguntei pra ocê piá. Foi pro meu escudeiro.

- Não chefe, responde dessa vez o escudeiro Caveirinha.

- Desembucha logo piá, tenho mais o qui fazer.

“tô vendo”, pensa Chico no meio do pânico em que se encontra, unido nesse coro os outros presentes no momento.

- É sobre o boneco da malhação do Judas e dos nomes expostos esse ano.

- Como qui é? Fala alto piá, sou meio surdo.

Por isso só fala berrando? Parece estar sempre brigando com alguém, conclui Chico em seus pensamentos.

- Fala logo piá que já tô ficando injuriado com isso. Sandrinho pega a pistola dourada e Chico gela.

Agora toda sua vida passa diante de seus olhos. Uma tontura faz o mundo rodar quando o traficante esquisito sai da piscina com a arma em punho.

- Porra, piá, tu é homi pra fala ou não? Vai bosta, desenrola.

As pernas de Chico amolecem pálido quase cai não se estatela no chão por que os traficantes o seguram pelos braços. Uma das armas é encostada em seu nariz como ameaça ao longe ouve a voz esganiçada de seu algoz.

- Fala seu merdinha. Não vai desmaiar ô mocinha. Risadas preenchem o ar.

Tudo escurece então.

Quando acorda está largado ao chão. Encostado em uma parede ao lado de uma churrasqueira. Reconhece o Caveirinha, depois Pinel. Convocado para dar explicações sobre o que está acontecendo aqui.

- Tá acordando.

- Dá uma água com açúcar para a donzelinha se acalmar. E para com isso de chefe, não sou índio.

Um dos capangas trás dentro de casa um copo com água, desconfiado Chico bebe. Sem contrariar bebe.

- Levanta logo piá, rápido. Ordena Sandrinho com impaciência que Chico logo percebe que o sujeito tem de sobra.

Quer sair o mais depressa possível dali então obedece. Esforça-se com a tontura que sente após o desmaio. Suas pernas só precisam obedecer. Nunca sentiu tantas emoções na vida. A voz daquele sujeito também já está irritando. Sem saber divide essa irritação com metade dos capangas do próprio Sandrinho.

- O Pinel aqui já anunciou o qui tu queria. Seu merdinha.

- Eu escrevi seu caso com a Ivete na Malhação do Judas.

- Tu és mais surdo do qui eu piá? O que acabei de dizê pra tu? Qui já fui informado do qui tu fez viadinho. Sandrinho agita as mãos como se fosse italiano, claro, com a pistola dourada na mão.

Chico engole em seco.

- Vou ti dizer – Sandrinho continua após uma parada dramática, morde os lábios secos, se fossem outros tempos, cola a pistola no peito do Chico, eu ti furava todo. Mas...

- Eu vim pedir desculpas.

- Cala a boca seu piá di merda. Quando eu falo ninguém abre o bico. Tá vendo eles? Tá vendo argum deles falar? Então. Bico fechado não entra musquito. E nem pipoco. Tá certo?

Chico fica de bico calado.

- Como ia dizendo – Sandrinho tira de uma gaveta que tem ao lado da churrasqueira enquanto fala com Chico um baseado, acende, a fumaça que solta espalha pelo local o cheiro característico da erva. Traga e segura nas bochechas uma grande quantidade de fumaça e alcança a seu escudeiro. Dá uma baforada, segura, tosse, passa para outro. Seguindo de mão em mão até passar por Chico que inibido rejeita com um movimento quase insensível, enquanto sente o perfume que domina o ar. – dá uns pega aí. Mariquinha, hein? Só vai ti fazer bem. Tu és crente?

Chico resolve não responder. Depois da última...

- Tem mulher seu merdinha?

Acena que não com a cabeça.

- Sabia. Cuzão. Pau no cú. Mulher gosta de homem com coragem. Por isso, seu punheteiro, eu não castiguei o Milton. Ele teve coragem. Sabia que a mulher era minha e meteu a rola assim mesmo. Além do mais me fez um favor. Me livrou daquela demonha daquela mulher. Era uma chicletona! Não largava do meu pé. Pior que chulé. Então a coragem dele me salvou daquela diaba. Igual a você, piá de bosta. Também fez um favor pra mim. Quando si espalho a notícia de que os dois estavam colocando chifres em “múá”, francês, eu falo, os dois vasaram da comunidade, aí, graças a sua corági, eu me vi livre daquele pé no saco, e sem sujar mais meu nome na polícia com o assassinato dos dois para servir de exemplo pro morro, não pode deixar a bandeira cair, também ia criar confusão pros negócios honestos que levamos aqui, e também para o enriquecimento do morro, ou melhor, da comunidade. Toda vez que cumprimos a lei por aqui aparece os pé preto para complica nossas vidas.

Chico entende definitivamente por que quem fala nos alto-falantes distribuídos pelas ladeiras do morro não é ele próprio.

- aí, piá, fica suave. Você quebrou essa pra mim. Fique “suce”. Ti devo uma. Mais uma coisa seu filho de uma biscate: que isso não se repita certo?

Chico aquiesce com a cabeça que entendeu. Quase inodoro o movimento.

- Então tem um pedido a fazer se quiser piá feio.

Chico não se rogou de envergonhado e arriscou logo um pedido. Sem pensar muito claro.

- Poderia não tocar mais o Hino do Americano toda vez que ele perde?

Um silêncio sideral tomou conta do ar. Até o som distante das pessoas morro abaixo, na avenida, no ar, tudo foi engolido por um vácuo sem som, sem ar, sem vida. Nem uma mosca caminhando se ouviu, nem respiração, todos os presentes pararam, o vento nas folhas, nem o bater do coração daquelas pessoas ali se ouviam mesmo que na boca pronto para pular fora.

-Vasa daqui piá. Sussurra Sandrinho dissolvendo o vácuo que os engoliu.

De costas para Chico. Envia uma mensagem crucial do fim do encontro. Pinel segura o amigo pelo braço e arrasta-o rapidamente como o piscar de olhos para longe do Quartel do Crime esse batizado pelo pessoal do “movimento”.

Pinel com o dedo em riste, logo ao saírem e se afastarem do grande portão e muros que cercam a casa de Sandrinho, fala excitadíssimo ao amigo.

- Tu tá maluco Chico?

- Será que ele vai fazer o que pedi?

- Só uma pessoa teve a audácia de pedir o fim dessa tortura véio e continuar vivo.

- Quem? Chico parece não se importar com a resposta, está em êxtase. O momento agora que importa.

- A mãe dele, véio. A mão dele.

- Nossa. Valeu! Disse relaxado Chico.

Descem pelas ladeiras, aliviados. Risos soltos preenchem as escadarias e ladeiras.

UMA FAMÍLIA BRASILEIRA.

  Wigo andava por esses últimos dias com um incômodo que não sabia o do por que. O imigrante alemão veio à vila vender sabão e velas, enquan...